Milton Carvalho Gomes*
Os contratos de concessão de rodovias no Brasil, comumente com vigência de 30 anos e investimentos na casa dos bilhões de reais, são exemplos emblemáticos de contratos complexos, relacionais e inevitavelmente incompletos. Esses contratos diferem significativamente dos contratos administrativos comuns.
A multiplicidade de variáveis envolvidas e a necessidade de manter esses elementos em equilíbrio ao longo do tempo exigem uma arquitetura jurídica e uma gestão contratual extremamente habilidosa.
O curso do cumprimento contratual inevitavelmente desafia as regras originalmente pactuadas, que, com o passar do tempo, podem se tornar inadequadas para as novas circunstâncias.
Contratos de concessão estão sujeitos a uma série de variáveis críticas, como demanda (que define a receita), preço dos insumos, disponibilidade de mão de obra, câmbio, taxas de juros, e seguros.
Embora decisivos para o sucesso do projeto, muitos desses fatores estão fora do controle das partes contratantes, de modo que a oscilação dessas variáveis ao longo do tempo pode levar à inviabilidade do contrato, resultando em crises contratuais quando as combinações de variáveis conduzam a um resultado economicamente insustentável.
Mudanças climáticas, eventos extremos, alterações nos hábitos sociais e novas tecnologias são novos riscos que precisam ser considerados em contratos de concessão.
Ninguém assina um contrato pensando em rescindi-lo, mas é necessário estar preparado para adaptar-se a essas mudanças e enfrentar os desafios que elas impõem.
Quando um contrato de concessão se revela inviável após alguns anos de vigência, quais são as alternativas? A concessionária pode já ter investido bilhões, apostando em um longo período de retorno, com o ponto de equilíbrio projetado para mais de uma década à frente.
O alto comprometimento em termos de investimentos, tempo e assunção de riscos torna o encerramento antecipado do contrato uma solução extremamente traumática e custosa para ambas as partes.
Nessas situações, típicas de contratos relacionais, as partes tornam-se, em certa medida, reféns uma da outra, o que impõe a busca de soluções negociadas para a superação de crises contratuais.
O Direito Administrativo muitas vezes parte da presunção de que contratos administrativos são perfeitos, atribuindo quaisquer problemas de execução a um suposto comportamento desviante do contratado privado.
No entanto, contratos de concessão são inerentemente imperfeitos, elaborados por indivíduos sujeitos a vieses que limitam sua racionalidade. Algo que se imaginou adequado no momento da elaboração contratual, pode se apresentar como um risco à sua continuidade poucos anos depois.
Como Daniel Kahneman demonstrou em sua pesquisa em economia comportamental, dentre muitos outros vieses, os indivíduos tendem a ser excessivamente otimistas, minimizando riscos futuros e priorizando ganhos imediatos.
Essa limitação da racionalidade humana impõe uma reflexão sobre como corrigir defeitos que emergem no curso da execução contratual.
O Direito Administrativo clássico, pautado por uma lógica punitivista, de aplicação mecânica da lei, com base em uma ideia de legalidade estrita, não fornece ferramentas para o resgate da viabilidade contratual e, muitas vezes, agrava ainda mais situações de crise contratual.
Essa abordagem simplista não leva em conta as razões subjacentes ao descumprimento contratual e acaba por extrair valor do contrato, ao impor multas que são destinadas ao erário público, sem nenhum retorno para o usuário.
Multas e descontos contratuais comprometem ainda mais a geração de caixa do projeto, criando um efeito bola de neve que leva, em casos extremos, à extinção por caducidade.
Contudo, como afirmou o Ministro Bruno Dantas em recente evento promovido pelo TCU, a caducidade é mais uma ficção jurídica do que uma solução real, resultando em longas disputas e dever de indenizar a concessionária com recursos públicos.
Essa tradição jurídica positivista, base do nosso Direito Administrativo, fundada em uma hermenêutica ortodoxa de aplicação da lei, explica em grande parte a dificuldade que muitos juristas ainda enfrentam ao aplicar o princípio constitucional da eficiência.
A internalização da eficiência como filtro interpretativo impõe a quebra da premissa de que há apenas uma resposta juridicamente correta para cada situação e leva à aceitação de que várias interpretações podem ser válidas se resultantes de um processo de ponderação de princípios no caso concreto.
Havendo interpretações alternativas possíveis e juridicamente válidas, cabe ao intérprete, na aplicação da norma jurídica, ponderar os princípios em jogo e consideração os resultados práticos de cada alternativa como critério fundamental de tomada de decisão.
Renegociações de contratos de concessão devem ser realizadas, por imposição constitucional, sempre que forem a solução mais eficiente e capaz de gerar maior valor social.
Essa prática, longe de ser uma falha do sistema, representa um reconhecimento da necessidade de adaptação contínua e da busca por soluções que maximizem os benefícios para a sociedade.
Porém, a mudança de um enfoque puramente formalista para uma perspectiva orientada por resultados requer não apenas uma atualização teórica, mas também uma transformação cultural dentro das instituições jurídicas e administrativas.
Esta transformação é necessária para que o sistema jurídico possa adaptar-se às novas realidades e demandas de contratos de longa duração, onde a flexibilidade e a adaptação são cruciais para a adequada prestação dos serviços públicos.
Essa migração, de um modelo jurídico tradicional para um novo modelo, a ser construído, envolve riscos. A segurança jurídica é um dos grandes pilares do nosso sistema constitucional, que estabelece também a legalidade como um princípio fundamental a ser observado.
Se, por um lado, a sociedade moderna impõe uma atualização dos modelos jurídicos clássicos, por outro não há um novo modelo de prateleira, que possa ser acionado e colocado em prática imediatamente. Esse novo modelo precisa ser construído e essa construção envolve riscos.
Contratos devem ser cumpridos. Mas contratos de concessão precisam ser renegociados, como forma de adaptação e resiliência às inúmeras variáveis às quais estão sujeitos.
As fronteiras práticas entre renegociações de interesse público e renegociações resultantes de oportunismo das partes são muitas vezes obscuras, colocando em risco o princípio da segurança jurídica e banalizando a força obrigatória dos contratos.
O remédio para isso não é a vedação à renegociação, com consequente sepultamento contratual, mas sim a construção de camadas de institucionalismo que sejam capazes de assegurar seriedade, integridade e limites a esse processo de evolução e amadurecimento contratual.
Como identificado por Daron Acemoglu em sua pesquisa, a segurança dessa transição só virá com a construção de instituições mais fortes, bem como de procedimentos adequados, transparentes, eficientes e sujeitos a controles externos.
A participação da Advocacia-Geral da União é elemento fundamental dessa equação, assim como a aproximação dos órgãos de controle e da sociedade civil. A única certeza que temos é que não podemos permanecer inertes diante dos problemas; a ação é necessária para criar soluções que atendam às novas demandas sociais e econômicas.
Ao invés de questionar a legitimidade da renegociação, o debate jurídico deve evoluir para discutir como essas renegociações podem ser conduzidas de maneira que minimizem os riscos envolvidos e maximizem os resultados positivos tanto para o setor público quanto para o privado.
Isso inclui o desenvolvimento de espaços e mecanismos claros e transparentes de renegociação, que contemplem a participação de todas as partes interessadas, o estabelecimento de parâmetros objetivos para a avaliação dos impactos econômicos e sociais e a criação de salvaguardas institucionais que assegurem a integridade do processo.
Assim como Fernão de Magalhães, que, baseado em pesquisas e em sua intuição, acreditou na existência de uma nova rota marítima para as índias pelo sul da América, nós, ao enfrentarmos os desafios dos contratos de concessão, devemos estar dispostos a explorar novos caminhos.
Magalhães não tinha certeza se encontraria a passagem, mas compreendeu que ficar parado não era uma opção.
A renegociação de contratos se apresenta como uma alternativa para a solução de problemas críticos que acometem o programa de concessões de rodovias há muitos anos, significando não apenas a busca de eficiência na gestão desses contratos, mas também a melhoria dos serviços para os usuários, o fortalecimento da infraestrutura nacional, o aumento da segurança jurídica e a atração de novos investimentos.
Esse ciclo virtuoso, resultante de um arcabouço jurídico capaz de enfrentar e solucionar grandes desafios, é fundamental para o desenvolvimento sustentável do país.
*Milton Carvalho Gomes é procurador-geral da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e doutorando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto
Fonte: Agência iNFRA