Obras que descumprem leis ambientais e urbanas podem estar sendo liberadas pela Prefeitura do Rio de Janeiro

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Felipe Lucena

As liberações, emitidas pela Prefeitura através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico, estão em diversas as regiões da cidade

Algumas licenças legais ambientais e urbanas para a realização de obras no Rio de Janeiro vêm sendo questionados pela Justiça, integrantes do poder legislativo e instituições da sociedade civil. As liberações, emitidas pela Prefeitura através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico, estão em diversas as regiões da cidade.

Antes das licenças ambientais passarem a ser competência da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Econômico, eram de responsabilidade da Secretaria Municipal de Meio Ambiente.

Entre os licenciamentos supostamente ilegais estão três hospitais, dois em Botafogo e um no Humaitá; um edifício na Urca; um grupamento residencial no Horto; construção de guarderia nas areias da Praia do Pepê, na Barra, entre outros.

Além dos conhecidos casos da tirolesa no Morro do Pão de Açúcar, o aterramento de parte da Lagoa de Jacarepaguá para construção de empreendimento residencial, a construção de galpões logísticos na Avenida Salvador Allende (Recreio dos Bandeirantes) e a construção do Anel Viário de Campo Grande, sem Estudo de Impacto Ambiental.

No fim da reportagem, vamos detalhar cada caso.

Em junho deste ano, a vereadora Luciana Boiteux (Psol) entrou com uma representação junto ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPE-RJ) para apontar as possíveis ilegalidades na fiscalização e no licenciamento urbano e ambiental na cidade do Rio de Janeiro e abriu também um pedido para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que acabou não acontecendo. Inicialmente, o número de assinaturas necessárias para a abertura do processo foi alcançado, mas alguns vereadores desistiram no último momento e a CPI não andou.

Segundo Luciana Boiteux, há uma série de indícios de que a Prefeitura tem facilitado obras sem o devido licenciamento ambiental, desrespeitando normas e desconsiderando o debate com a população afetada pelos novos empreendimentos. “O que queremos é parar de tratar no caso a caso e que possamos nos debruçar sobre o processo de licenciamento, podendo identificar a origem das ilegalidades e responsabilizar as autoridades políticas que estão concedendo as licenças sistematicamente com irregularidades”, ressalta a parlamentar.

Ao menos cinco dos processos de licenciamento mencionados na representação entregue ao Ministério Público do Estado do Rio já foram questionados na Justiça, inclusive com quatro ações do Ministério Público Federal. São eles: instalação de tirolesas nos morros da Urca e do Pão de Açúcar; construção no terreno do Instituto de Matemática Pura Aplicada (Impa), no Jardim Botânico; aterramento da Lagoa de Jacarepaguá para construção de residencial na Barra da Tijuca; construção destinada à sede esportiva da Associação Carioca de Windsurf e guardaria de pranchas na Praia do Pepê, na Barra da Tijuca; e concretagem de muro de contenção em sete trechos da Praia da Barra da Tijuca.

O documento que pediu a abertura da CPI que acabou não acontecendo teve o apoio de associações e coletivos, como a Federação das Associações de Moradores da Cidade do Rio de Janeiro (FAM Rio), Grupo de Ação Ecológica (GAE), Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (Senge), Fórum Cidadania, Movimento Parque Realengo Verde, SOS Praias Cariocas, Grupo de Estudos em Educação e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Geema), associações de moradores como a de Vargem Grande (Amavag) e da Praça Cardeal Arcoverde, do Horto (Abama Horto), Movimento Baía Viva, Movimento Parque de Realengo e Fórum Socioambiental da Zona Oeste.

O que diz Executivo Municipal

A Prefeitura da cidade do Rio e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico foram procuradas pela reportagem. A Smdeis respondeu que “a integração dos licenciamentos ambiental e urbanístico foi um avanço para a cidade, especialmente para os empreendedores que respeitam as leis e fazem investimentos, geram empregos – atingimos o pico histórico de 3,4 milhões de pessoas ocupadas em 2024 – e respeitam o processo democrático que estabelece as regras de construção na cidade. Também representa maior sustentabilidade, na medida em que formaliza e traz para legalidade no campo ambiental milhares de empreendimentos, que resultaram na obrigação de replantio de 130 mil árvores. O corpo técnico concursado da prefeitura que analisa hoje os processos é o mesmo que sempre analisou, baseado nas mesmas obrigações legais, somente respondendo para outra secretaria. Porém, o ganho de eficiência permitiu que a prefeitura demolisse mais de 4 mil imóveis irregulares nos últimos quatro anos, dando um prejuízo ao crime organizado de mais de R$ 1 bilhão, o que comprova a eficiência da fiscalização ambiental e urbanística. Quem quer construir dentro da legalidade, ganhou eficiência nunca antes vista na cidade, e que ainda virou referência em todo país. Quem infringir tais normas, sofre as consequências da lei”.

Detalhes dos casos citados na reportagem

Os três licenciamentos envolvendo empreendimentos hospitalares nos bairros de Botafogo e Humaitá são: a construção de hospital oncológico junto à Casa de Saúde São José (Humaitá), transformação para uso hospitalar de edificação na R. Gal Polidoro e mudança para uso hospitalar de edificação na Av. Pasteur (ambos em Botafogo).

Esses licenciamentos tratam de áreas inseridas no Projeto de Estruturação Urbana (PEU) de Botafogo, instituído pela Lei Municipal nº 434 de 27 de julho de 1983. Ocorre que a norma estaria sendo desrespeitada, conforme a seguinte determinação: “Art. 15º – As atividades de assistência médica com internação, de clínica veterinária e de hospital veterinário não são permitidas na Zona Residencial 3 (ZR-3) e nos Centros de Bairro 1 (CB-1) dos bairros de Botafogo (Código 20.4017) e do Humaitá (Código 20.4020), da IV Região Administrativa“.

Ainda nos bairros de Botafogo e Humaitá há mais dois casos de possível ilegalidade urbanística: anúncio de construção de grupamento residencial multifamiliar situado na Rua Humaitá, 12 e uma escola na Rua da Matriz, 25.

Os dois casos também desrespeitam o PEU de Botafogo, Lei Municipal nº 434 de 27 de julho de 1983, mas dessa vez em relação ao gabarito dos imóveis. O prédio anunciado prevê 12 pavimentos não afastados das divisas, de modo que a edificação desrespeitaria o artigo que define os limites para prédios residenciais: “Art. 6º (…)

I – para as edificações não afastadas das divisas, 5 (cinco) pavimentos, não sendo computados neste número o pavimento de uso comum e 1 (um) pavimento-garagem;

II – para as edificações afastadas das divisas, 11 (onze) pavimentos, não sendo computados neste número o pavimento de uso comum e 1 (um) pavimento-garagem nem permitido o pavimento de cobertura previsto no art. 120 do Regulamento de Zoneamento”.

Já a escola, que possui 5 pavimentos, desrespeitaria o artigo 18º: “Art. 18º – Na área da IV Região Administrativa, nos bairros de Botafogo (Código 204017) e do Humaitá (Código 204020), as edificações não residenciais, de uso exclusivo, não poderão ter mais do que 3 (três) pavimentos, qualquer que seja a natureza do uso”.

O licenciamento desta escola foi tema do Requerimento de Informação 2931/2023, cuja resposta afirma que “a licença se encontra vencida e faz parte das restrições para o Habite-se da construção, dentre outras a apresentação do Certificado de Aprovação expedido pelo CBERJ”. Nota-se assim que a instituição de ensino está em pleno funcionamento há anos sem o “Habite-se” e sem a devida aprovação do Corpo de Bombeiros. Esses dois casos também desrespeitam a Lei Orgânica Municipal no que se refere ao gabarito: “Art. 448º – Qualquer edificação colada nas divisas não poderá ultrapassar a altura de doze metros, seja qual for o uso da edificação ou do pavimento, admitidas as exceções que a lei estabelecer“.

Em outra situação no bairro da Urca, foi anunciado um edifício com estúdios de 25m² na Rua Odílio Bacelar, nº.10 e 16. Isso desrespeitaria o Código de Obras, Lei Complementar n.° 198 de 14 de janeiro de 2019, que define: “Art. 11º (…) I – na Área de Planejamento 2 – AP 2, deverá ser atendida ainda a área média mínima de trinta e cinco metros quadrados úteis para todas as unidades da edificação ou lote, excluindo-se as varandas e terraços descobertos”. É possível que haja também violação do PEU Urca, Decreto n.° 1.446 de 02 de março de 1978, que define coeficiente de adensamento para a área.

Na Rua Barão de Oliveira Castro, no bairro do Horto, foi licenciado um grupamento residencial com mais de 11 mil m² de área construída em uma Zona Residencial 1, em contrariedade com o Decreto n.° 322 de 3 de março de 1976: “Art. 22 – O uso residencial permanente é: I – Adequado: em ZR-1 e ZR-6, em unidade residencial de edificação unifamiliar, única no lote”.

No bairro da Barra da Tijuca há indícios de duas grandes obras ilegais na praia. A construção de guarderia nas areias da Praia do Pepê e a instalação de elementos de contenção em manta geotêxtil nas areias da praia.

Os dois casos indicam violações à Constituição Federal, que determina: “Art. 20. São bens da União: (…) IV–as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II”.

Também suscitam violações à Constituição do Estado do Rio de Janeiro que estabelece: “Art. 268 – São áreas de preservação permanente: (…) II – as praias, vegetação de restingas quando fixadoras de dunas, as dunas, costões rochosos e as cavidades naturais subterrâneas-cavernas”.

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, instituído para Lei Federal nº 9.985 de 18 de Julho de 2000, parece ter sido desrespeitado no que diz respeito ao licenciamento ambiental: “Art. 36. Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo relatório – EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei. (…). § 3o Quando o empreendimento afetar unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma das beneficiárias da compensação definida neste artigo”.

Cabe ressaltar que as duas construções foram feitas em área de proteção ambiental, conforme prevê a Lei Municipal n.° 1.272 de 6 de Julho de 1988, que declara área de proteção ambiental a Orla Marítima das Praias de Copacabana, Ipanema, Leblon, São Conrado e Barra da Tijuca. No caso da guarderia há ainda um dispositivo nesta mesma legislação que também foi contrariado: “Art. 2º – Não será permitido qualquer tipo de construção de caráter permanente-provisório ou desmontável com finalidade para o exercício de atividades comerciais, mesmo que de apoio a vendedores ambulantes, na Orla Marítima definida do artigo anterior”.

O debatido caso das tirolesas na Urca desrespeita o Decreto n.° 26.578 de 01 de junho de 2006, que cria o Monumento Natural Pão de Açúcar, o Decreto n.° 33.534 de 23 de março de 2011, que trata do licenciamento de obras em áreas de risco, e ainda a Lei Federal n.° 9.985 de 18 de julho de 2000 (que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), pois é unidade de proteção integral. O Ministério Público Federal a ofertou uma Ação Civil Pública, que tramita na 20ª Vara Federal do Rio de Janeiro (TRF2) nos autos do processo n° 5062735-09.2023.4.02.510.

Saindo da Urca e indo para a Zona Oeste da cidade, em três casos há sinais de licenças ambientais que não cumpriram os critérios técnicos (e que já foram inclusive denunciados pela imprensa): o aterramento de parte da Lagoa de Jacarepaguá, para construção de empreendimento residencial, no bairro de Jacarepaguá; a construção de galpões logísticos, na Av. Salvador Allende, no bairro do Recreio dos Bandeirantes; e a construção do Anel Viário de Campo Grande, sem Estudo de Impacto Ambiental.

O empreendimento imobiliário com vista privilegiada para a Lagoa de Jacarepaguá (representado na foto acima) tem sido questionado na Justiça por supostamente ocupar uma Área de Proteção Permanente (APP) na Barra da Tijuca. A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) instaurou um inquérito para investigar a retirada irregular de vegetação nativa.

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAC) disse, em nota, que realizou visita ao local da obra e que as atividades estão de acordo com a licença emitida.

A construtora Gafisa S.A, responsável pela obra, também por meio de nota, declarou que o empreendimento possui todas as licenças necessárias dos órgãos competentes, inclusive ambientais. Ela defende que as alegações de danos ao meio ambiente são infundadas e está à disposição da comunidade para esclarecer todas as dúvidas.

Sobre o caso da tirolesa no Morro da Urca, o Parque Bondinho Pão de Açúcar informou que “é uma atividade de uso público, o que se enquadra perfeitamente na categoria de Monumento Natural. É uma unidade de conservação que permite a visitação pública com atividades autorizadas por plano de manejo. Por isso, a tirolesa seguiu rito de licenciamento ambiental e de consulta a todos os órgãos gestores, incluindo conselho consultivo do MoNa, Iphan, Secretarias municipais e GeoRio. Esse movimento está totalmente de acordo com previsões do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC e com a vocação do MoNa. Apesar do termo proteção integral, é uma categoria de UC que permite o uso público em área destinada para isso. Nesse caso em particular, foi proposta sua instalação nas áreas do Complexo Turístico que estão reconhecidas no Plano de Manejo”.

“O que está em curso é um projeto de intensa mercantilização da cidade, com vistas a privilegiar megaempreendimentos, pasteurizar os espaços urbanos e maximizar os lucros do capital privado por meio da máquina pública. Tudo isso contra os interesses públicos, sem pensar nos cidadãos afetados, nos danos ao meio ambiente, e sem sequer dialogar com a população. Esse projeto está evidente pelas próprias modificações que o Prefeito Eduardo Paes tem realizado nas estruturas da prefeitura, como a retirada do poder-dever de emitir o licenciamento ambiental da pasta de Meio Ambiente e a recém-criação de uma ‘supersecretaria’ como a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Econômico. Para tanto, a Prefeitura vem buscando a flexibilização de leis que visam proteger o bem comum e a população, e quando isto não é possível, vem até mesmo descumprindo as normas, com vistas a privilegiar um suposto desenvolvimento econômico“, declarou a vereadora Luciana Boiteux.

Fonte: Diário do Rio