Há dez anos, Kethellen da Conceição, de 23 anos, moradora do Jardim Zaíra, em Mauá, na Região Metropolitana de São Paulo, viveu o drama de ser soterrada por uma barreira que caiu sobre sua casa. Cinco anos depois, o bairro passou por uma nova tragédia: duas crianças morreram após uma encosta deslizar. Outras mortes pelo mesmo motivo ocorreram em 2011 e 2023. Um projeto do município para prevenção de acidentes naturais no bairro chegou a ser feito e contemplaria obras de contenção de encostas e drenagem, mas não avançou. Já Kethellen, sem outra saída, reconstruiu sua casa.
O anúncio pelos governos federal e estaduais de verbas emergenciais para o atendimento a vítimas de desastres naturais e para a reconstrução de cidades não é a garantia de segurança para moradores de áreas atingidas. Obras contra enchentes se arrastam até 15 anos, em pelo menos seis estados, com promessas de gastos de R$ 7,3 bilhões (valores corrigidos). Bahia, Espírito Santo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, com históricos de estragos provocados por fortes temporais, abrigam projetos de obras que deveriam evitar os impactos de fenômenos da natureza, mas que nunca se concretizaram. Em alguns casos, foram cancelados, paralisados ou se arrastam há décadas, obrigando famílias a morar em áreas de risco, como a de Kethellen.
O Jardim Zaíra soma 22 das 37 ruas consideradas de alto risco para deslizamentos em Mauá, que tem 3.600 moradias em áreas ameaçadas. A ocupação irregular no bairro começou nos anos 1980, conta o líder comunitário Ronaldo Melo, de 62 anos. Os primeiros incidentes ocorreram já nos anos 1990.
— Em 1997 e 1998, morreram cinco pessoas em deslizamentos — lembra Melo.
Apesar das mortes, as obras em encostas pouco avançaram. Em 2013, Mauá aprovou um projeto de R$ 150,3 milhões (corrigidos) para as áreas críticas do Jardim Zaíra junto ao governo federal. Estavam previstas obras de urbanização, regularização fundiária e moradias populares. A maioria das ações pouco ou nada avançou, e parte dos repasses acabou cancelada.
Um dos casos mais dramáticos do Jardim Zaíra aconteceu na Rua Ane Altomar, um caminho estreito à beira de um barranco, onde duas crianças foram soterradas em 2019.
— Elas costumavam brincar junto com os meus filhos — diz Daniella Aparecida da Conceição Silva, de 37 anos, que mora na casa vizinha à da tragédia, comprada há cinco anos por R$ 7 mil, e é irmã de Kethellen, soterrada em 2014 até o pescoço em um deslizamento no mesmo barranco:
— Eram 3h e estava chovendo. Eu estava no quarto com a minha mãe, irmão e sobrinha quando tudo desabou. Fiquei só com a cabeça para fora (da terra). Vizinhos derrubaram a parede e nos resgataram.
A prefeitura de Mauá informou que realiza um levantamento para um novo projeto para o bairro, a ser apresentado à Caixa Econômica Federal.
— Em muitos lugares será possível fazer obras de contenção, mas em outros, a única solução é a saída das famílias — afirma o secretário municipal de proteção e defesa civil, Sérgio Moraes de Jesus.
Barragens incompletas
Em 2010, Pernambuco registrou um dos piores desastres ambientais de sua história, com a elevação, após temporais, do nível do Rio Una, matando 20 pessoas, desalojando 82 mil e afetando 67 cidades. Os governos estadual e federal firmaram convênio de R$ 2,2 bilhões, em valores corrigidos, para a construção de cinco barragens para evitar enchentes. Mas, 14 anos depois, só uma foi entregue.
O projeto previa as barragens de Barra de Guabiraba, Igarapeba, Serro Azul, Gatos e Panelas. Somente Serro Azul foi concluída. Em 2013, o estado anunciou a conclusão do projeto para 2017 e o início imediato das obras em Barra de Guabiraba e Igarapeba. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, foram concluídas 27% das obras em Guarabira e 39,4%, de Igarapeba. Em Gatos as obras avançaram 34,9% e em Panelas, 57,9% . Juntos, os dois últimos projetos vão proteger 200 mil moradores.
Em nota, o governo de Pernambuco informou que segue com “rigor”o cronograma de retomada das barragens, interrompidas em 2014. As obras em Panelas foram retomadas em fevereiro, com previsão de entrega até o período de chuva de 2025. A de Gatos será retomada em agosto e tem previsão de 12 meses para a conclusão. A de Igarapeba passa por atualização de projeto neste mês. A de Barra de Guabiraba deve ser avaliada em junho.
Castigada no final de 2021 pela chuva, a Bahia também soma obras paradas. Foi anunciada a liberação de R$ 136 milhões corrigidos para as cidades atingidos. Pelo menos 190 foram prejudicadas e houve 30 mortes. Mas desde 2013 há ações de prevenção de enchentes em andamento. Em Salvador, são 120 locais com obras de contenção de encostas orçadas R$ 282,2 milhões corrigidos iniciadas em 2014. Outras, de 2013, no valor de R$ 44,8 milhões corrigidos, foram paralisadas com 89% da obras executadas. Itabuna e Ilhéus reúnem obras de prevenção de enchentes que, juntas, somam R$ 7,6 milhões corrigidos. Há macrodrenagem em Itabuna, iniciada em 2010, e recuperação de encostas em Ilhéus, de 2016.
Já Santa Catarina viveu em 2008 sua maior tragédia ambiental provocada por dois meses seguidos de chuvas que culminaram em 150 mortos e 80 mil desabrigados ou desalojados. A região mais atingida foi o Vale do Itajaí. O governo federal anunciou R$ 2,4 bilhões (corrigidos) ao estado. Quase 16 anos depois, ainda constam no Painel de Obras do Ministério da Gestão ações de contenção de encostas e drenagem, 30 estações meteorológicas com pluviômetros e rede telemétrica para monitoramento de barragens e reservatórios não iniciadas.
Tragédias seguidas
Também em 2008, a Serra Fluminense enfrentou chuvas que devastaram os vales de Cuiabá e Boa Esperança, em Petrópolis. Três anos depois, a Região Serrana enfrentou até então maior desastre natural do país, em que morreram mil pessoas. Houve o anúncio pelo governo de R$ 215 milhões (corrigidos) às cidades.
Em Itaipava, por conta de 2008, foi anunciada em 2013 a drenagem dos rios Cuiabá, Santo Antônio e Carvão. A obra, de R$ 142,8 milhões (corrigidos) com verba federal, foi paralisada várias vezes e se arrasta até hoje. Em nota, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) disse que as ações seguem e que 90% foram executadas. Petrópolis voltou a ser castigada pela chuva em 2022, quando morreram 235 pessoas e houve a liberação de R$ 2,5 milhões (corrigidos).
Assim como em Itaipava, em Nova Friburgo o projeto de combate a enchentes no Córrego Dantas não foi concluído. Segundo o Inea, 60% foram executados. O Painel de Obras aponta ainda obras em andamento ou suspensas no Rio, Baixada Fluminense e Espírito Santo, castigado pela chuva em 2013 e que teve liberados R$ 1,6 milhão (corrigido).
Para o diretor do Centro de Apoio Científico em Desastres da UFPRA, Renato Lima, a demora na conclusão das obras se deve a diversos fatores:
— Muitas vezes, há mudanças de governo que resultam em troca de equipe, mudança de prioridades e desconhecimento de projetos anteriores, sem contar que esse tipo de investimento não produz muito reconhecimento popular.
Já a professora de Finanças Públicas da FGV-SP Élida Graziane diz que falhas nos projetos são um outro motivo.
Fonte : O Globo