Premiações em série de Curitiba levam em conta programas ambientais, de saúde e fomento à inovação – com ou sem uso de tecnologia
A menção a “cidade inteligente” pode remeter a um lugar futurista, altamente tecnológico. Mas uma análise dos projetos premiados nos principais fóruns internacionais revela exemplos que nem sempre envolvem o uso de alta tecnologia.
É assim que Curitiba acumula premiações por programas como uma usina de energia solar instalada num antigo lixão problemático, um aplicativo de marcação de consultas de saúde e hortas coletivas em terrenos abandonados, entre outros. O termo “cidade inteligente” costuma definir municípios que conseguem resolver problemas de forma sustentável, conectada e eficiente.
Só para citar os mais recentes, Curitiba recebeu o título de Cidade Mais Inteligente do Mundo em 2023 na Fira Barcelona; o primeiro lugar no Government Excellence Awards de 2024, com o programa Fala Curitiba (consulta pública sobre o orçamento), nos Emirados Árabes; o prêmio Urbanismo Pioneiro 2024, do Bilbao Metropoli 30, na Espanha; o World Green City Awards 2024, com o Programa de Agricultura Urbana, na Holanda; e o Seoul Smart City Prize 2024.
Os rankings de “cidade mais inteligente” variam todo ano, pois seguem critérios e metodologias das diferentes organizações, que estão sempre buscando novos projetos inovadores.
As cidades mais citadas costumam ser Zurique, na Suíça, pelo serviço público e planejamento urbano de qualidade; Oslo, na Noruega, por iniciativas ambientais e seu transporte público; Camberra, na Austrália, pela infraestrutura digital; Copenhague, na Dinamarca, pelas soluções em energia limpa; além de Londres, Cingapura, Helsinki, Hamburgo, Estocolmo, Genebra, Tel Aviv e Dubai, entre outras.
O espaço de eventos da Fira Barcelona sedia o midiático World Smart City Awards, onde Curitiba ganhou o principal prêmio em 2023, resultado conferido à chinesa Shenzhen em 2024 e a Buenos Aires em 2022.
No Brasil, além de Curitiba, o Rio de Janeiro foi premiado em 2013 pelo mesmo World Smart City por projetos como o Centro de Operações Rio, a Central 1746 e o Porto Maravilha.
“Essas conquistas impulsionam o desenvolvimento de soluções inovadoras que tornam a cidade mais segura, eficiente e sustentável. A visibilidade internacional dessas premiações atrai investimentos, fomenta parcerias estratégicas e fortalece a confiança na gestão pública”, diz Leandro Matieli, secretário da Casa Civil do Rio de Janeiro.
Já o ranking do Intelligent Community Forum, sediado em Nova York, tem um caráter de fomentador de novas iniciativas e traz resultados mais inusitados. Entre as top 7 cidades escolhidas em 2024, além de Curitiba, estão Assaí, também no Paraná; Coral Gables (Flórida) e Hilliard (Ohio), nos EUA; a região de Durham e Fredericton, no Canadá; e Yunlin, em Taiwan.
Existem diversos outros rankings mundo afora, a exemplo do brasileiro Connected Smart Cities, que em 2024 deu a liderança a Florianópolis, seguida por Vitória (ES), São Paulo e com Curitiba em quarto lugar.
Desenvolvido pela Urban Systems em parceria com o Necta, o ranking analisa dados e informações de todos os municípios brasileiros com mais de 50 mil habitantes, mas os organizadores destacam que as dez cidades selecionadas ainda atingiram pouco mais da metade do total máximo de pontos, ou seja, podem melhorar em muito ainda seus índices e qualidade de vida.
Historicamente, Curitiba tem sido polo de testes de novos produtos. Agora, por exemplo, a ideia é testar aqui a entrega de mercadorias via drone de forma comercial e sistemática e, quem sabe, o carro voador na sequência.
“Curitiba sempre esteve à frente em inovação e trânsito e tem leis que permitem esse incentivo”, diz Marcos Ribeiro Resende, diretor de negócios da Atech, braço da Embraer responsável por novas tecnologias.
“A entrega por drone envolve transferir a logística para outra dimensão, que é o espaço aéreo. A vantagem de Curitiba é o arcabouço regulatório de incentivo, conhecido como ‘sandbox’, que autoriza testes de soluções para melhorias de mobilidade urbana, sejam elas terrestres ou aéreas.”
Para o Movimento Pró-Paraná, o que explica as premiações de Curitiba passa mesmo pelo ecossistema de inovação, alimentado pelas 700 startups da cidade – o apoio municipal inclui o ISS tecnológico, reduzido de 5% para 2% para empresas de base tecnológica selecionadas -, e programas como o prontuário eletrônico e a oferta pioneira de videoconsultas de saúde, hoje presentes em várias outras cidades. “Isso foi muito importante na pandemia, com o agendamento da vacinação”, relembra o prefeito Eduardo Pimentel (PSD).
Para ele, a cidade inovadora não é só tecnológica, mas também criativa. “Gosto de citar esse aplicativo, o Saúde Já, onde o usuário recebe seus exames e marca consultas de forma digital, lado a lado com as 208 hortas urbanas, onde espaços deteriorados são transformados: a prefeitura doa sementes, e a partir daí a comunidade se une pela produção de alimento saudável.”
Na avaliação de Eros Leon Kohler, coordenador do Lactec, um centro de pesquisas para a indústria, um grande facilitador é a larga adoção do 5G em Curitiba. “Isso estimula a inovação, a exemplo de sistemas de iluminação pública inteligentes e ações de inclusão digital, por meio de aplicativos e pontos de internet pública gratuitos, estrategicamente espalhados por diferentes regiões da cidade”, diz.
“Sou totalmente aberto à tecnologia, e é assim que quero manter Curitiba no hall da inovação internacional”, diz Pimentel, para quem “todo prefeito que saiu um pouco das diretrizes do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippuc) não foi bem”.
“Há uma inteligência anterior à radicalização do uso da tecnologia que tem beneficiado Curitiba”, afirma Marcos Domakoski, presidente do Movimento Pró-Paraná. “Desde 1965, com o Ippuc, houve a valorização do pedestre e do centro histórico; a verticalização dos eixos estruturais e a criação das canaletas exclusivas para ônibus, bem como a ampliação de parques e espaços públicos”, enumera.
“Boa parte daquilo que Curitiba tem hoje em termos de resultados, tanto positivos quanto desafios, são oriundos dos anos 1970, década de guinada na cidade”, afirma Sérgio Czajkowski Jr., professor de planejamento estratégico da universidade UniCuritiba.
O difícil é manter a tradição de inovar e não se acomodar – afinal, os prêmios são anuais e a concorrência é grande. O embaixador da Fira Barcelona no Brasil, Beto Marcelino, é quem organiza as feiras Smart City Expo em Curitiba. Em março deste ano, o evento sai do parque Barigui para ocupar o estádio do Clube Athlético Paranaense, devido ao grande número de interessados.
Ele conta que, nos diferentes fóruns internacionais de cidades inteligentes, os municípios devem inscrever projetos específicos. “O principal é a gestão pública querer submeter um projeto que considera importante. Quando é selecionada, a cidade ganha uma espécie de capital social e intelectual, aparece numa vitrine internacional e passa a ser procurada por investidores, empresas, indústrias de tecnologia e bancos de fomento”, diz.
Outro entusiasta de Curitiba é o canadense John Jung, o criador do conceito de cidade inteligente e presidente do Intelligent Community Forum (ICF), que conferiu seu principal prêmio a Curitiba em 2024.
“Como auditor in loco nas cidades, foi uma inspiração para mim o comprometimento de Curitiba, o respeito pelas pessoas, a terra e o meio ambiente”, diz. Ele conta ao Valor que, desde que conheceu o arquiteto Jaime Lerner, ex-prefeito e governador do Paraná, morto em 2021, passou a estimular as lideranças curitibanas a se inscreverem em prêmios como o seu e comemora cada conquista.
Com a memória de “capital ecológica”, mote de Curitiba antes de ser “cidade inteligente”, hoje o enfoque é a energia renovável, com o início da eletrificação da frota de ônibus. Mas, para as irmãs Maria Eugênia e Maria Júlia Fornea, isso não basta – é preciso parar de usar o carro individual quando não há necessidade. É isso que elas querem promover nos prédios que constroem em regiões nobres da cidade.
A ideia é não ter muros, com uma fachada ativa que permite a passagem de pessoas pelo térreo, com restaurantes e lojas – seguindo a tese de que movimento gera segurança. “A cidade inteligente pede que a mobilidade seja revista, com mais circulação a pé e menos de carro, especialmente em bairros onde há muitas facilidades por perto”, diz Maria Eugênia. Pensando nisso, a dupla escolheu como ação social de sua empresa Weefor a doação de bicicletários para os terminais de ônibus das cidades que circundam Curitiba.
Dessa forma, tocam num ponto crucial para qualquer metrópole, que é a relação com a população periférica. Eros Leon Kohler acrescenta um problema recorrente em muitas cidades, que é a ocupação irregular de áreas, especialmente aquelas destinadas à preservação ambiental.
“Nesse contexto, iniciativas como o projeto do Bairro Novo da Caximba, que substitui palafitas irregulares por um bairro planejado e inteligente, representam um bom exemplo de esforços voltados à recuperação e requalificação do ambiente urbano’, diz. “Outro destaque é o projeto Pirâmide Solar, que converteu um antigo aterro sanitário em um gerador de energia limpa, por meio da instalação de painéis solares.”
Para a doutora em gestão urbana Rafaela Aparecida de Almeida, professora da Uninter, em ocupações irregulares, onde não há ruas cadastradas nem CEP, a exclusão típica do Brasil é ainda mais acentuada. “A população fica impossibilitada até mesmo de receber alertas da Defesa Civil em situações de temporais, enchentes ou outros riscos ambientais. Isso evidencia a dificuldade de Curitiba em avançar no cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 10, da ONU, que visa reduzir as desigualdades”, diz.
Para ela, apesar de iniciativas como o programa Wi-Fi Curitiba, que oferece pontos de acesso público à internet em locais estratégicos, a distribuição desses serviços não é uniforme. “Em bairros como Tatuquara, Campo de Santana, Umbará e Cidade Industrial, a quantidade de pontos gratuitos é significativamente menor em comparação com áreas centrais, o que agrava a exclusão digital.”
Segundo Almeida, essa limitação restringe o acesso a oportunidades educacionais, serviços públicos digitais e atividades econômicas que dependem de conectividade. Além disso, fatores como infraestrutura precária e falta de dispositivos adequados dificultam o acesso à internet para muitos moradores.
Por essa deficiência, o diretor de operações da Realize Hub, Victor Hugo Domingues dos Santos, acredita que ainda falta para Curitiba alcançar o desafio proposto pela Unesco de ser uma cidade MIl – com alfabetização midiática e informacional.
Por outro lado, ele cita iniciativas positivas, como as capacitações constantes e gratuitas oferecidas pelos programas Bom Negócio e Curitiba Empreendedora e Empreendedora Curitibana. “Os nove Espaços Empreendedor, que realizam 991 atendimentos diários aos 210 mil Microempreendedores Individuais formalizados de Curitiba, além dos programas 1º Empregotech e o Empregotech 40+, oferecem formação para o mercado de trabalho em tecnologia da informação”, diz. O que falta é levar esses avanços a todos, desafio da sociedade brasileira como um todo.
A cidade inteligente pede que a mobilidade seja revista, com mais circulação a pé e menos de carro”
— Maria Eugênia Fornea
Um crítico do discurso de “cidade inteligente” é Denis Alcides Resende, pós-doutor em cidade digital estratégica e professor da PUCPR. “Não tem nada de errado em ganhar prêmios. Mas falta pensar a cidade de forma mais estratégica. A mobilidade em Curitiba é um fator que deixa a desejar, com a integração de bicicleta, ônibus e automóvel. Outras áreas, como habitação, saneamento e saúde, são muito deficitárias. Basta ver a grande quantidade de moradores de rua”, afirma.
“De um lado, temos prêmios de inteligência no sentido tecnológico, e no outro, uma pobreza muito grande. É claro que a cidade tem seu lado positivo, com técnicos competentes buscando alternativas tecnológicas, mas não se vê investimento na área social – falta equilíbrio.”
Para Sérgio Czajkowski Jr., os desafios de urbanismo mais gritantes na cidade incluem a violência urbana, a necessidade de melhorar a infraestrutura e a gestão de resíduos, provenientes das regiões mais periféricas. “A cidade precisa lidar com questões de crescimento populacional na região metropolitana e desenvolvimento sustentável de longo prazo.”
Um olhar para outras cidades já premiadas como inteligentes pode ajudar a manter o faro para a inovação. Um exemplo é Barcelona, que tem lixeiras para determinados resíduos conectadas a um duto, em que o rejeito vai direto para uma usina de incineração por meio de vácuo.
A cidade tem ainda um aplicativo que interliga todos os modais – com o uso de um cartão, o morador pega ônibus, metrô, bicicletas e até táxi – no que Beto Marcelino, diretor de relações governamentais da consultoria iCities, considera uma “mobilidade 2.0”.
“Em Curitiba, ainda temos que criar mais interligação”, afirma ele, e acrescenta o exemplo do cartão para uso dos serviços públicos de Shenzhen, na China, e o modelo de segurança do bairro Puerto Madero, em Buenos Aires. “Ali existe um sistema de vigilância, com monitoramento de pessoas, que Curitiba poderia ter em seus mais de 50 parques”, sugere.
Ele cita ainda o High Line Park, em Nova York, bulevar turístico que transformou uma área degradada e serve de inspiração a outros locais. “Se pensarmos nas cidades que usam a Internet das Coisas no planejamento urbano, que é um critério bastante empregado nos rankings, não podem ficar de fora Zurique, Lausanne e Genebra, na Suíça; as capitais dos países escandinavos e também Londres, Abu Dhabi e Dubai”, diz Marcos Domakoski.
Inspirado em Milão e Barcelona, Pimentel quer trazer a Curitiba o aluguel social permanente, com períodos maiores para famílias ocuparem imóveis disponíveis. “Você ocupa espaços abandonados, aquece o mercado imobiliário, agiliza a fila da Cohab e pode priorizar eixos estruturantes, que são próximos de terminais e regionais de saúde”, diz.
Outra promessa é investir na empregabilidade dos jovens, estimulando cursos técnicos, e em inteligência artificial. “Queremos saber, por exemplo, onde estão se desenvolvendo focos de dengue e melhorar o abre e fecha de sinaleiros. E quero colocar ar-condicionado em todas as escolas municipais da cidade com energia vinda do telhado solar.”
Fonte: Valor Econômico