Incoerência entre ETP e TR causa nulidade da licitação

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Fonte: Consultor Jurídico
24/03/2025

A coerência entre o Estudo Técnico Preliminar (ETP) e o Termo de Referência (TR) não é apenas uma boa prática administrativa. Trata-se de exigência prevista de forma evidente na Lei nº 14.133/2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos). Ignorar essa diretriz compromete a legalidade do processo licitatório, causando nulidade, retrabalho e insegurança jurídica.

Lógica legal da fase de planejamento
O artigo 6º, inciso XX, aponta o ETP como a primeira etapa do planejamento da contratação, de modo que o ETP não é uma peça meramente opinativa. A ideia do legislador no texto da lei evidencia a base lógica e técnica do ETP sobre a qual se assenta o TR (artigo 6º, inciso XXIII, alínea “b” — “…fundamentação da contratação, que consiste na referência aos estudos técnicos preliminares correspondentes…”).

De outro lado, o artigo 18, caput, da Lei nº 14.133/21, primeiramente menciona o dever de considerações técnicas e mercadológicas, que, evidentemente, são inerentes ao ETP, de modo que apenas no seu inciso I, se reporta à definição do objeto no TR.

Ademais, o mesmo artigo da lei, em seu parágrafo primeiro, inciso I, dispõe que o ETP “deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução”.

Isso leva à conclusão de que o TR deve conter fundamentação da contratação com uma obrigatória decorrência em compatibilidade com o ETP, sendo que uma alteração no objeto que desconsidere fundamentos ou conclusões do ETP constitui violação direta à legalidade (artigo 37 da Constituição Federal), tornando o ato absolutamente nulo, insanável, uma vez que há falha na motivação do ato administrativo.

Posicionamento do Tribunal de Contas da União
O TCU já se manifestou, no Acórdão nº 2273/2024 – Plenário, no sentido de que, embora o ETP possa até não constar em anexo do edital, ele deve demonstrar a necessidade e viabilidade técnica e econômica da contratação, havendo um dever para o gestor público de minimizar riscos de conflito entre ETP e TR. O alerta do TCU é simples e contundente — a ausência de coerência é falha grave de planejamento.

Consequências da incoerência entre ETP e TR
Quando o TR introduz inovações não estudadas ou especificações distintas daquelas tratadas no ETP, quebra-se a lógica sistêmica imposta pela legislação. Isso ocorre em situações que podem ser exemplificadas de diferentes áreas demandadas, como nos casos reais abaixo mencionados:

1) o ETP conclui que o mais vantajoso para a administração é contratar serviço de transporte, mas o TR, de forma surpreendente, propõe a aquisição de frota própria;

2) o ETP demonstra existência de amplo mercado internacional para determinado armamento, indicando solução via pregão eletrônico internacional, mas o TR segue para inexigibilidade com base em declaração de exclusividade nacional de fabricante ou segue para um mero pregão nacional; e

3) o ETP trata do mercado de dispositivo médico com determinadas especificações usuais e pertinentes para a finalidade pretendida, mas o TR, simplesmente, aparece com outras características técnicas sequer analisadas previamente.

Diante do avanço de uma licitação até seus estágios finais, mas com erros dessa natureza, deve-se considerar o artigo 71, inciso III, da Lei nº 14.133, que impõe a anulação de ofício ou por provocação nos casos de ilegalidade insanável. No caso, a ilegalidade decorrerá da quebra de motivação válida do ato administrativo, um motivo desconectado dos fatos estudados, o que viola o artigo 5º (princípios da legalidade, do planejamento e da motivação), sendo que o artigo 11, inciso I, da lei obriga que se assegure a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração. E uma nulidade ligada à finalidade do ato é insanável, devendo ser reconhecida em qualquer etapa do processo.

Força vinculante do ETP
A estrutura da Lei nº 14.133/2021 confere ao ETP caráter vinculante, como já ponderado, e não apenas porque o artigo 18, parágrafo primeiro, inciso XIII, obriga que ele tenha posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina, mas porque o TR deve ser elaborado com fundamento nesse posicionamento, como já alertado em face do artigo 6º, inciso XXIII, alínea “b”, sendo nulo o processo que não observe tal coerência.

A vinculação também leva a outra reflexão sobre ETP e TR: o ato administrativo somente se sustenta se seus motivos, de fato e de direito, forem verdadeiros, válidos e juridicamente compatíveis.

Incoerência que altera estimativa de valor entre ETP e TR e tem outros reflexos
Embora o foco deste artigo não seja a pesquisa de preços, é relevante destacar os impactos da incoerência entre ETP e TR nesse aspecto:

1) quando se tem determinado estudo do mercado e soluções no ETP se tem não apenas o universo de competidores em potencial, produtos e serviços disponíveis como uma indicação de solução a ser adotada, então, envolvendo certo custo estimado; e

2) se o TR altera especificações técnicas e descaracteriza o que havia sido estudado no ETP isso leva a alteração até radical da base ou do universo de licitantes possíveis e até radical alteração dos custos daquela contratação, o que implica em potencial direcionamento de especificações e eventual sobrepreço, em falta de consonância com todo um trabalho de estudo “de mercado” que havia sido feito ainda no ETP; e

3) em decorrência dessas situações, a competitividade do processo licitatório terá perda e as condições de competição na fase de disputa terá efeitos reflexos danosos, ou seja, um potencial indicador de conflitos administrativos e judiciais logo em seguida.

Medida necessária: anulação e replanejamento
Diante da constatação de que o TR diverge do ETP de forma substancial e nem justificada tecnicamente, em algum tipo de documento novo, complementar, que se reporte ao ETP e aponte claras e justificadas razões para mudança de especificações, a medida cabível é a anulação da fase de planejamento, por dever de ofício ou por provocação de órgãos de controle interno, externo ou qualquer interessado, licitantes ou não. Trata-se de matéria de ordem pública, insuscetível de convalidação, pois fere a essência do procedimento legal.

A autoridade competente deve, no exercício do poder-dever de autotutela, determinar que a fase de planejamento tenha uma “reinstrução”, com ajuste entre o ETP e o TR, pois ir em frente negligenciando a cautela sobre isso levará à quebra da finalidade do processo licitatório: a busca pela proposta de resultado mais vantajoso (artigo 11, inciso I, da Lei nº 14.133/2021).

Conclusão
Não se trata de escolha discricionária. O alinhamento entre ETP e TR é imposição legal, técnica e lógica. Não considerar isso significa quebrar a base do planejamento, burlando o modelo racional das contratações públicas. Em tempos de controle rigoroso e necessidade de eficiência, ignorar esse encadeamento é retroceder. A boa administração exige respeito à coerência, não como formalismo, mas como caminho para a legitimidade e a integridade da licitação e da contratação dela decorrente.