Governo discute compras públicas como estratégia para impulsionar transição para economia mais verde. Entenda

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Relatório encomendado pelo Ministério da Gestão e Inovação será apresentado nesta segunda-feira

As compras públicas podem ser uma alavanca para a transição brasileira para uma economia de baixa emissão de carbono. Para tanto precisam ser coordenadas e estratégias e, mais do que isso, devem fomentar pesquisa e desenvolvimento também no setor privado. Essas são as principais linhas que serão discutidas pela economista italiana Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e Valor Público na University College London, onde é diretora fundadora do UCL Institute for Innovation and Public Purpose (IIPP), nesta segunda-feira, em Brasília, quando será apresentado ao governo federal o relatório “Transformação do Estado no Brasil: Projetando compras públicas, empresas estatais e infraestrutura pública digital para promover o crescimento sustentável e inclusivo”. O estudo, produzido a pedido e em parceria com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, traz propostas para tornar o Estado brasileiro mais eficiente, buscando alinhar prioridades econômicas, sociais e ambientais.

Nessa entrevista por e-mail ao blog, Mariana conta um pouco do que será proposto ao governo para as compras públicas de ministérios e estatais para impulsionar para o novo modelo econômico desenhado pelo governo.

O relatório aponta o baixo investimento em pesquisa e desenvolvimento no país, sendo o investimento do setor privado surpreendentemente menor. Para um país que pretende uma transição de modelo, isto parece crítico. Como alterar este cenário no âmbito das compras estatais e da infraestrutura digital?

Mariana Mazzucato: Isto é crítico. São necessários investimentos públicos e privados para impulsionar o crescimento. Mas o investimento empresarial em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Brasil é baixo – apenas 0,53% do PIB e menos da metade do investimento nacional total em P&D.

Ao estimular o investimento público interministerial e o investimento privado intersetorial, uma estratégia de crescimento orientada para missões – por exemplo, avançada através da Nova Política Industrial e do Plano de Transformação Ecológica do Brasil – pode funcionar como um motor para acelerar e direcionar o crescimento. As missões são objetivos políticos – por exemplo, relacionados com a saúde, o clima, a segurança alimentar e a inclusão digital – que a inovação e o investimento do setor privado devem alcançar. As missões funcionam melhor quando o Governo tem alavancas para moldar oportunidades de mercado que irão catalisar esta inovação e investimento, ajudando a cumprir a missão e ao mesmo tempo contribuindo para o crescimento. A contratação pública é uma dessas alavancas, por isso é tão importante concebê-la bem.

Os investimentos públicos orientados para missões podem atrair investimentos do setor privado que de outra forma não teriam acontecido, conduzindo a repercussões da inovação e aumentando a produtividade do trabalho em todos os setores. A contratação pública orientada para missões pode, portanto, contribuir para um efeito multiplicador, onde o impacto no PIB é maior do que o investimento público original necessário para alcançá-lo.

Como funcionam as missões?

Mariana Mazzucato: As missões são concebidas para estimular o investimento, a inovação e a transformação em todos os setores – em contraste com as abordagens tradicionais à estratégia industrial que se centraram no apoio a setores-chave, esta abordagem tem maior probabilidade de gerar um efeito multiplicador e ajuda a evitar o risco de captura do Estado por interesses privados. Ao concentrar-se não apenas na direção do crescimento econômico, mas também na forma como a colaboração entre os setores público e privado está estruturada, o governo pode estabelecer uma relação mais mutualista, centrada no trabalho com as empresas para alcançar objetivos partilhados e produzir valor partilhado.

As condicionalidades são uma ferramenta fundamental para estruturar relações público-privadas mais mutualísticas: o governo pode garantir que o acesso a subvenções públicas, empréstimos e investimentos de capital, benefícios fiscais e outros incentivos depende do alinhamento das práticas pelas empresas com objetivos políticos mais amplos, como o acesso a preços acessíveis aos produtos ou serviços resultantes, práticas sustentáveis de utilização da terra, empregos bem remunerados, investimento em P&D e, em alguns casos, partilha de lucros com o governo.

Alcançar este efeito exige que as ferramentas, instituições, parcerias e capacidades do governo sejam concebidas de forma orientada para os resultados. O último relatório do UCL Institute for Innovation & Public Purpose, sobre Transformação do Estado no Brasil: Projetando compras públicas, empresas estatais e infraestrutura pública digital para promover o crescimento sustentável e inclusivo – que escrevemos para o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos do Brasil – descreve como isso poderia ser no Brasil.

Este trabalho baseia-se no meu trabalho anterior com o Governo do Brasil, que remonta a 2016, analisando o potencial do sistema de inovação do Brasil e as mudanças necessárias para promover o crescimento económico sustentável, inclusivo e liderado pelo investimento.

O relatório discute o papel dos contratos públicos e das empresas públicas na transição para uma economia sustentável. Quão distante estamos deste modelo e como é que ele pode impulsionar a mudança? Algum aspecto mencionado no relatório já foi implementado pelo governo? A limitação de alimentos ultraprocessados na merenda escolar seria uma das medidas?

Mariana Mazzucato: O Governo do Brasil está perseguindo uma agenda de desenvolvimento econômico que enfatiza a descarbonização da economia e o combate à fome e à desigualdade, juntamente com o crescimento. E reconheceu que só será capaz de fazer avançar esta agenda se o próprio Estado se transformar. É por isso que o papel do Ministério da Gestão e Inovação nos Serviços Públicos é tão importante. Para moldar mercados que se alinhem com estes objetivos e para direcionar um crescimento sustentável e inclusivo, o Estado precisa de ferramentas e instituições adequadas à sua finalidade. Isto inclui contratos públicos e empresas estatais.

As compras públicas são frequentemente tratadas como uma ferramenta transacional para adquirir um bem ou serviço de uma forma que minimize riscos e custos. No entanto, como salienta o nosso relatório recente, contratos públicos bem concebidos podem ser utilizados para criar procura de inovação, investimento e produção que contribuam para o avanço dos objetivos políticos do governo. O tamanho dos orçamentos de compras públicas – que equivalia a 16% do PIB do Brasil em 2021 – sublinha este potencial.

A senhora poderia dar algum exemplo?

Mariana Mazzucato: Existem fortes exemplos de uma abordagem de compras mais estratégica e orientada para a missão no Brasil. Um exemplo é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Este programa foi concebido para se alinhar ao compromisso do presidente Lula com o programa Fome Zero (que começou durante a sua gestão anterior). Também está alinhado com a Nova Política Industrial do Brasil, que identifica cadeias de valor agroalimentares sustentáveis que contribuem para a segurança alimentar como missão.

O Pnae utiliza as compras como ferramenta para criar oportunidades de mercado para os agricultores familiares. Afastou-se da abordagem convencional de procurar o licitante com o preço mais baixo, para uma abordagem focada na promoção de um ecossistema mais diversificado de fornecedores, no desenvolvimento local, na utilização sustentável da terra e na segurança alimentar, ao mesmo tempo que fornece alimentos saudáveis aos alunos das escolas públicas e contribui para melhores resultados de aprendizagem.

A utilização de compras no contexto do Complexo Económico-Industrial da Saúde do Brasil, para melhorar o acesso a produtos farmacêuticos que salvam vidas e melhorar, reduzir os preços, exigir acordos de transferência de tecnologia e aumentar a produção nacional, é outro exemplo convincente. No entanto, estes exemplos ainda não foram dimensionados em todo o sistema. A próxima Estratégia Nacional de Compras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável é uma oportunidade para mudar esta situação.

E como isso funcionaria?

Mariana Mazzucato: Da mesma forma, as empresas estatais estão entre os maiores atores econômicos no Brasil e têm um impacto significativo nos principais mercados. Em vez de serem geridos de forma independente, com um foco estreito na eficiência e nos lucros, poderiam ser posicionados de forma mais estratégica para trabalhar de forma colaborativa e coordenada com outras partes do governo e com outros intervenientes econômicos, para alcançar objetivos partilhados.

O BNDES exemplifica o que significa adotar uma abordagem orientada para a missão no contexto de um banco público, fornecendo capital alinhado com prioridades políticas governamentais mais amplas. A Petrobras poderia avançar numa direção semelhante, ao reorientar as suas atividades em torno da descarbonização e de iniciativas energéticas de baixo carbono.

Ao discutir as compras públicos, o relatório enfatiza três áreas principais: coordenação interministerial, contratos estratégicos, reformas de modelos e competências. Como isso funciona e qual é o cronograma de implementação? Isto requer recursos para fazer a mudança ou é mais uma questão de mentalidade?

Mariana Mazzucato: No nosso relatório, propomos alterações nas compras públicos em três áreas: governança, orientação para resultados e capacidade de entrega e inovação. Trata-se de utilizar os fundos públicos existentes de forma mais estratégica para proporcionar maior valor público.

Por exemplo, recomendamos que as duas comissões interministeriais do Brasil focadas em compras – a Comissão Interministerial para Inovações e Aquisições do Programa de Aceleração do Crescimento (CIIA-PAC) e a Comissão Interministerial de Compras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (CICS) – expandam seu foco não apenas para promover regras de conteúdo local, mas também para identificar oportunidades de compras com alto potencial para apoiar objetivos políticos abrangentes e coordenar os ministérios para aproveitar essas oportunidades.

Para permitir a orientação para os resultados, poderia ser desenvolvido um novo quadro para definir e medir o valor público dos contratos públicos. Para alavancar as aquisições de forma mais estratégica, é importante ir além das medidas estáticas, como a análise de custo-benefício, que considera os impactos diretos, geralmente em termos monetizados e, portanto, enfatiza a redução de custos e as eficiências de curto prazo, em vez dos impactos transformadores mais amplos e de longo prazo das políticas de aquisições concebidas para moldar os mercados e alcançar os objetivos da missão.

Isto também requer investir nas capacidades dinâmicas das equipas de compras a todos os níveis de governo. Este foi um dos temas que discutimos num workshop interministerial que co-organizamos com o Ministério da Gestão e Inovação nos Serviços Públicos, em Julho de 2024. O papel dos organismos de compras centralizados poderia ser reforçado não só para reunir orçamentos de aquisição e, assim, moldar os mercados, mas também para funcionar como laboratórios públicos de inovação com a missão de experimentar e executar projetos de demonstração.

Existe algum cálculo ou análise sobre o impacto da transição da economia brasileira para um projeto mais sustentável usando essas recomendações? Até que ponto essa mudança pode ser acelerada? Poderá isto ser mais dispendioso do que utilizar os atuais critérios baseados em preços? Como pode ser feita essa análise, ou melhor, como podemos ensinar os gestores a utilizar esse parâmetro?

Mariana Mazzucato: Estas mudanças devem ser promovidas com um sentido de urgência, para que possa ser concretizado todo o potencial dos contratos públicos como ferramenta para o desenvolvimento sustentável. Com a Estratégia Nacional de Compras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável a ser lançada ainda este ano, o Brasil tem a oportunidade de acelerar a adoção de uma abordagem de compras mais estratégica e orientada para a missão no atual mandato do governo.

A senhora menciona continuamente no relatório a necessidade de mudar a perspectiva, indo além do foco no custo para abraçar a noção de “bem comum”. Como definimos o “bem comum” e como podemos garantir que este conceito seja transversal a todo o governo?

Mariana Mazzucato: A economia do “bem comum” é o tema do meu próximo livro. Colocar o conceito de bem comum no centro da forma como governamos as nossas economias significaria permitir e incentivar governos, empresas e representantes da sociedade civil a moldarem os mercados de forma ativa e colaborativa para alcançar objetivos comuns. Isto leva à criação de valor público (em vez de estritamente privado).

Para avançar nesta direção, precisamos que os governos compreendam o seu papel na formação dos mercados, e não apenas na resolução das falhas do mercado, na criação de valor, em vez de apenas permitir que outros o criem, e na orientação do crescimento, e não apenas na sua promoção.

Identifico cinco princípios para orientar as economias em torno do bem comum: propósito e direcionamento; cocriação e participação com cidadãos e partes interessadas; aprendizagem coletiva e partilha de conhecimento; acesso para todos e partilha de recompensas – que demonstra a importância de partilhar os benefícios da inovação e do investimento com todos os que assumem riscos na economia; e transparência e responsabilidade.

Ao falar sobre intercomunicação entre os sistemas, a senhora cita o Cadastro Ambiental Rural, sua importância no combate ao desmatamento e no fornecimento de uma cadeia agroindustrial sustentável. Que outros sistemas deveriam ser integrados nas compras estatais?

Mariana Mazzucato: O Cadastro Ambiental Rural (CAR) tem potencial para se tornar um exemplo robusto de Infraestrutura Pública Digital (DPI) – se for projetado de acordo com o DPI e bons princípios comuns e orientado em torno de um caso de uso que se alinhe com um objetivo político prioritário.

O CAR é uma ferramenta para coletar, monitorar e gerenciar dados sobre o uso da terra rural. Tal como explicamos no nosso relatório e no documento de trabalho que o serviu de base, a CAR poderia ajudar a construir as prioridades ambientais, econômicas e industriais, aproveitando a digitalização para melhorar a supervisão ambiental.

Especificamente, ao permitir a rastreabilidade nas cadeias de valor agroindustriais, o CAR pode contribuir para o objetivo do governo de acabar com o desmatamento ilegal e promover o uso sustentável da terra – uma prioridade importante, dado que três quartos das emissões de gases de efeito estufa no Brasil resultam da agricultura e de mudanças no uso da terra, e que, embora o desmatamento da Amazônia e de outras regiões críticas esteja desacelerando, em conformidade com a promessa do presidente Lula de acabar com o desmatamento ilegal até 2030, ele continua a um ritmo insustentável.

De que forma essa estratégia de compras estratégicas é importante?

Mariana Mazzucato: Isso é importante para garantir que o todo seja maior que a soma das partes. A Nova Política Industrial, o Novo Plano de Aceleração do Crescimento, o Plano de Transformação Ecológica e o Plano Climático do governo, por exemplo, não devem ser vistos como responsabilidades de ministérios individuais que operam em silos. Em vez disso, deveriam ser governados como parte de uma abordagem orientada para a missão e de todo o governo, na qual todos os ministérios trabalham em conjunto para atingir objetivos comuns.

Idealmente, portanto, as missões deveriam estar no centro do governo, conduzindo uma agenda ambiciosa e interministerial. É promissor que o Plano de Transformação Ecológica do Brasil tenha sido alojado no Ministério da Fazenda. Isto assinala a sua centralidade na agenda global do governo e a importância de finanças públicas orientadas para os resultados e alinhadas com objetivos políticos mais amplos.

Para dar um exemplo mais específico, os contratos públicos serão mais eficazes na formação dos mercados se forem integrados com outros instrumentos políticos, tais como subvenções para P&D para apoiar a inovação que possa ser necessária para responder a determinadas oportunidades de aquisição, desenvolvimento de capacidades para ajudar os pequenos fornecedores a competir de forma eficaz, ou empréstimos para ajudar os fornecedores a fazerem a transição em linha com objetivos do governo, como a utilização sustentável dos solos e a redução das emissões de carbono.

Fonte: O Globo