Urbanista Zeca Brandão, ex-secretário executivo de Planejamento de Pernambuco, diz que pandemia evitou colapso anterior nos transportes, mas que ‘já está caótico de novo’
Na semana passada, a pesquisa Origem Destino 2023, realizada pelo Metrô de São Paulo, mostrou que, pela primeira vez na série histórica, o número de pessoas que usam transportes individuais, como carros, moto e corridas por aplicativo, superou a quantidade dos usuários de transporte coletivo na capital paulista. Para Zeca Brandão, arquiteto e urbanista da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), esse resultado retrata não só um fenômeno da maior metrópole do país, mas uma tendência nacional, como resultado de décadas de falta de planejamento urbano integrado nas grandes cidades.
Na pandemia, grande parte da população interrompeu sua rotina de deslocamentos diários e, durante o retorno gradual à normalidade, o ex-secretário executivo de Planejamento de Pernambuco acredita que essas pessoas se viram diante de maior oferta de viagens por aplicativo, com opções mais eficientes, seja na velocidade do trajeto, no conforto ou até no custo menor. Sem uma mudança de mentalidade na política de mobilidade urbana das prefeituras, diz Brandão, esse cenário tende a se manter, ampliando o trânsito nas ruas, as desigualdades e as injustiças sociais.
Veja abaixo a íntegra da entrevista com o urbanista.
O resultado divulgado sobre São Paulo se associa a algum fenômeno local, nacional ou global?
Acredito que seja um fenômeno nacional. Não sei se chega a ser internacional, porque em muitos países há a consciência de que a mobilidade é importante e que tem que ser pensada de forma integrada a outros componentes do planejamento urbano. Aqui no Brasil, a tendência é ver a mobilidade de forma isolada. As soluções são sempre ligadas ao sistema viário em si, por meio de viadutos, elevados, vias expressas, etc, e são coordenadas por profissionais da engenharia de tráfego, que são importantes, mas a mobilidade transcende as especificidades técnicas dessa disciplina. Conceitualmente falando, a falta de planejamento urbano integrado é o principal problema.
Como seria essa integração do planejamento urbano e da mobilidade?
Existem outros aspectos do planejamento urbano que interferem muito na mobilidade. Como por exemplo a distribuição dos usos no território da cidade. A localização das atividades comerciais, de serviços, de lazer, assim como o uso residencial e a densidade populacional do território influenciam até mais do que a própria estrutura viária.
Como essa distribuição afeta o trânsito das cidades brasileiras hoje?
As cidades brasileiras são muito “monocêntricas”, construídas em função de um centro único. O que é um problema sério, porque gera um fluxo moradia-trabalho-moradia, movimentos pendulares que são trágicos para o trânsito. Todo mundo sai de uma certa zona para outra zona específica no mesmo horário. A ideia de zonear os usos urbanos talvez tenha sido um dos maiores equívocos do urbanismo moderno.
Qual seria a melhor distribuição?
A estratégia mais importante de mobilidade é reduzir ao máximo a necessidade da pessoa se deslocar. Se crio uma estrutura urbana que permite você morar próximo de suas atividades do dia a dia, já melhora muito. Mas se a cidade obriga todo mundo a se deslocar grandes distâncias com frequência, isso sobrecarrega muito a infra-estrutura viária. Mesmo se aumentar a oferta do transporte coletivo.
Como mudar isso?
Precisa estimular os centros de bairros, através do planejamento e políticas públicas específicas, para qualificar essas áreas, investir em equipamentos de lazer, dar incentivo ao comércio local, dar o máximo de autonomia para esses subcentros. Assim, se todos os componentes de um território urbano estiverem presentes em um centro menor, o morador poderá se utilizar do que chamamos de “mobilidade ativa’, ou seja, fazer as coisas a pé ou de bicicleta. As cidades tradicionais, como as europeias, que não aderiram muito ao modernismo, mantiveram a diversidade de usos no mesmo território. Assim não priorizaram estrutura viária, não saíram criando elevados, viadutos e túneis como aqui.
Mas essa distribuição desigual está consolidada há décadas. Qual foi, então, o gatilho para que somente agora o transporte individual superasse o coletivo em São Paulo?
Acho que a qualidade do transporte coletivo não acompanhou a oferta do transporte privado. Na pandemia, todo mundo interrompeu sua rotina de deslocamento. Quando houve o retorno, ele foi gradual, foi quase um recomeço dos fluxos, e uma nova oferta de modal que se mostrava mais vantajoso, por ser mais confortável, mais rápido e mais seguro em termos de contaminação, foi intensificado. O modal de aplicativo se mostrou mais eficiente para o usuário. Se antes só a classe média-alta e alta tinha o transporte individual, agora as classes mais pobres também têm esse acesso, principalmente com as motos por aplicativo.
Os dados ainda mostram que a taxa de mobilidade urbana (quantas vezes por dia a pessoa sai de casa para algum deslocamento) caiu de 2,02 viagens por pessoa em 2017 para 1,68 em 2023.
Isso significa que o impacto da pandemia ainda existe, com certeza tem a ver com trabalho remoto, as compras on-line e os i-foods da vida, as pessoas estão se deslocando menos. Os dois modais (transporte coletivo e individual) caíram, mas o coletivo caiu muito mais. O impacto da pandemia tem que ser mais estudado, a gente ainda não sabe todo o impacto real.
Nas outras capitais do país, o trânsito também está muito ruim?
Acredito que sim. Recife, a cidade onde vivo, está um caos. O que salvou a mobilidade aqui, é horrível dizer isso, mas foi a pandemia, porque se não ia colapsar. E ainda não voltou tudo até agora, porque muita gente ainda está trabalhando remotamente, mas já está ficando caótico de novo. Eu trabalho a 15 quilômetros de casa e, mesmo fora da hora do pico, eu demoro cerca de 1h de carro. Não tem oferta de transporte público nesse trecho. No Nordeste, as classes média e alta não usam transporte público. Melhor solução é o metrô, mas é caríssimo construir.
A falta de integração entre os modais é um problema crônico, certo?
Sim, a cidade precisa ter mobilidade multimodal, com ônibus, BRT, VLT, metrô, etc, e serem integradas, para baldear com mínimo de tempo de espera, máximo de conforto e custo único, se possível. Só o poder público, assumindo protagonismo da mobilidade, vai viabilizar isso.
Qual a tendência a partir de agora?
Se continuar como está, a tendência é cada vez mais a tecnologia oferecer deslocamentos mais vantajosos do que o transporte público. A tecnologia vem e atropela o poder público, mas pensando na solução individualizada. Está oferecendo algo melhor para o indivíduo, mas claro que é pior para a cidade. O poder público precisa trazer mais tecnologia para o transporte público. Caso contrário, o trânsito vai ficar pior.
Fonte: O Globo