Por Fernando Gabeira
Creio que foi Guy Debord, no seu livro A Sociedade do Espetáculo, que enfatizou pela primeira vez como a percepção dos governos era mais importante que o que realmente faziam. Esta semana, o Brasil sofreu um pequeno baque. No ranking da Transparência Internacional sobre percepção de corrupção, caiu para 104.º lugar entre 180 países. Não estamos bem na fotografia.
Nos últimos tempos, tenho enfatizado a necessidade de se preocupar com a imagem das instituições, sobretudo para evitar súbitas e inesperadas revoltas populares como aconteceu em 2013.
São coisas distintas corrupção e sua percepção pela sociedade. Nesse particular, o chamado orçamento secreto, que vigorou no governo Bolsonaro, foi mais longe, para além de apenas passos suspeitos: a Polícia Federal teve de investigar compra de material robótico para escolas que não tinham internet, superfaturamento de tratores e um escandaloso caso numa cidade do Maranhão onde, para aumentar os repasses de emendas parlamentares, todos os habitantes teriam quebrado o dedo em um ano.
Mesmo sem avaliar o mérito das decisões de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, elas deixam no ar um vazio que deveria ser preenchido com abundantes explicações. Por duas vezes denúncias contra Arthur Lira, presidente da Câmara, foram aceitas e, depois, rejeitadas pelo Supremo. Um duplo recuo. O ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10 bilhões da J&F, mais tarde defendida nos EUA pelo ex-ministro da Corte Ricardo Lewandowski. Tudo isso merecia grande argumentação e, ainda assim, deixa no ar uma desconfiança que pode aumentar a percepção negativa, mesmo que o conteúdo das decisões não o seja.
A decisão do Supremo de permitir que os juízes julguem casos defendidos por parentes é medida que dificilmente escapa do paredão das dúvidas.
No Executivo, ministros indicados pelo Centrão, como o das Comunicações, aparecem em várias notícias. Recentemente, um ministro foi acusado de gastar fortunas em gasolina, com dinheiro da Câmara. Culpou o posto.
Despotismo cruzado, colocação de mulheres de políticos em tribunais de contas, uma série de práticas que produzem algumas notas rápidas, também contribuem para que o Brasil caia no ranking.
Talvez a batalha mais importante nesse particular esteja se dando no Congresso. Os parlamentares detêm R$ 47 bilhões do Orçamento. No momento, lutam para que não haja um corte de cerca de R$ 5 bilhões em emendas de comissão, uma espécie de recompensa pelo fim do orçamento secreto. Só de emendas chamadas PIX, dinheiro enviado para prefeituras, sem especificação do emprego, eles vão consumir R$ 8 bilhões. Como controlar o uso deste dinheiro enviado de forma tão, digamos, generosa?
E, como se não bastasse tudo isso, o Congresso aprovou uma verba de quase R$ 5 bilhões para financiar as eleições municipais. Devem ser uma das mais caras do mundo. Mesmo no tempo em que eram financiadas por empresas, o custo das eleições no Brasil rivalizava com o das norte-americanas.
Já se viu no passado que grandes campanhas repressivas contra a corrupção não resolvem. A desgraça da Lava Jato é um fator importante para analisar saídas.
Da mesma forma, grandes lições de moral entram por um ouvido e saem pelo outro. O caminho mais sensato é analisar esses dados, compreender que são negativos para atrair investimentos e avaliar os mecanismos de transparência e controle.
Sempre haverá teses de que nada disso importa, de que a percepção da corrupção é um problema da classe média e de que isso é apenas uma nota no pé de página da História.
Apesar da calma política que o País vive nas ruas, é possível dizer que esta percepção das instituições não é exclusiva das classes médias: há uma grande base popular que compartilha a desconfiança com as elites.
O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente, como tantas coisas que passam no Brasil. Elas indicam um acúmulo que não é sensato ignorar. Na história recente do País, esta larga percepção é instrumentalizada por falsos salvadores. Recentemente, foi a extrema direita que a capitalizou e acabou respaldando um orçamento secreto.
Desde a redemocratização, com a guerra contra os marajás, o slogan da ética na política, muitas tentativas falharam.
Talvez seja um passo adiante o fato de a percepção persistir, mas ter desaparecido a crença em soluções mágicas vindas da política. A mudança é mais lenta e, possivelmente, muito mais ampla do que simples troca de governos.
Naturalmente que a política não pode nem deve ser eliminada dessa equação. Mas, tendo a transparência como instrumento, em todos os níveis do poder, é a sociedade que deve buscar caminhos, baseada no simples fato de que paga impostos e tem direito a serviços de qualidade, algo que a corrupção definitivamente impede.
Por incrível que pareça, algumas pequenas cidades do Brasil já chegaram a trilhar esse caminho. Estamos num ano eleitoral e o exemplo de participação local pode acabar inspirando movimentos mais amplos.
É sempre bom lembrar que a qualidade da política piora quanto mais as pessoas comuns dão as costas para ela.
Fonte: Estadão