Um fenômeno que vem se espalhando é a transformação de um curso d’água perene, com vazão suficiente o ano inteiro, em intermitente, que fica seco em boa parte do ano
Nos últimos meses, a água do Rio Miranda, que já chegou a uma altura de oito metros, formou apenas poças no que parece um caminho de terra embaixo da Ponte 21, no distrito de Águas do Miranda, em Bonito (MS). A seca é comum todo ano, mas dessa vez, nem a temporada de chuva trouxe de volta a vazão do Miranda, que nasce no Cerrado e deságua no Rio Paraguai, no Pantanal. Sua última grande cheia foi há seis anos e pescadores procuram novas formas de subsistência.
O esvaziamento do Miranda reflete um processo que se espalha pelo país: desde 1985, o Brasil perdeu 30% de suas águas naturais, aponta o MapBiomas. O Pantanal foi o bioma mais afetado. Em 2023, a sua área alagada foi 80% menor que o observado em 1985, quando começou a série histórica do monitoramento.
Longos ciclos de secas não são um evento raro, segundo especialistas. Mas o retorno da chuva recupera o nível dos rios e lagos. A preocupação agora é a possibilidade de o ciclo ser interrompido, já que as florestas estão cada vez mais devastadas, afetando o regime de chuva e a retenção de água no solo. Além disso, os eventos extremos de secas e inundações estão mais frequentes, devido às mudanças climáticas.
— Todo ano temos períodos mais secos. Este ano, porém, está mais complicado. Com período reduzido de chuvas, enfrentamos um rio com acesso dificultado e alguns peixes deixam de migrar para as cabeceiras no tempo certo — conta Lucimara Henrique, presidente da Colônia de Pescadores de Águas do Miranda, preocupada com a diminuição de populações de piavuçu, piraputanga, pacu, pintado e dourado. — Estamos sofrendo com o calor excessivo.
Rios extensos e volumosos raramente deixam de existir. Mas um fenômeno que vem se espalhando é a transformação de um rio perene, com vazão suficiente o ano inteiro, em intermitente, que fica seco em boa parte do ano.
No Rio Grande do Sul, uma longa seca só foi interrompida em abril do ano passado, quando o El Niño passou a atuar com muita influência, acarretando fortes chuvas. Mas nos quatro anos anteriores, diversos rios secaram. No Sul da Bahia, as secas recentes nos rios Almada, Colônia e Salgado expuseram o problema na Mata Atlântica.
A Amazônia, onde fica mais de 60% da superfície de água do país, sofreu uma das suas secas mais severas no ano passado, afetando o transporte fluvial da população e de mercadorias e deixando comunidades ribeirinhas e indígenas em completo isolamento por meses. A cheia de 2024 não foi o suficiente e há expectativa de novas e graves estiagens em breve. Neste mês, os rios Madeira e Acre estão com os seus menores níveis da história.
O MapBiomas Água mostra que a área de superfície alagada do país foi, no ano passado, 1,5% menor que a média histórica. Em biomas como Cerrado e Caatinga, os reservatórios artificiais — hidrelétricas e lagos de mineração — já são maiores que os corpos hídricos naturais, como rios e lagoas.
Coordenador do MapBiomas Pantanal, Eduardo Rosa explica que a seca atual é semelhante à vivida na década de 1960 na região. Se na década de 1980 o Pantanal ficava pelo menos metade do ano alagado, hoje o “pulso de inundação” dura dois meses. Com isso, muitos rios perderam seus níveis de vazão, como o Taquari, que há alguns anos tem trechos totalmente secos. O próprio Rio Paraguai, o mais importante do bioma, também sofre.
— A planície do Pantanal é o reflexo da chuva no Planalto, na bacia hidrográfica do Paraguai. Desde o ano 2000, os picos de inundação têm alagado menos áreas e por tempos mais curtos — diz Rosa, acrescentando que o alagamento do Pantanal depende das chuvas no Norte, no Cerrado, que enchem o Rio Paraguai até ultrapassar a cota de 4 metros.
O Pantanal vem batendo recordes de focos de calor em função de uma seca histórica neste ano. Os prejuízos dos grandes incêndios de 2020 sequer foram recuperados, lembra Rosa. O coordenador destaca que desde 1985 a área com atividades humanas de impacto no bioma praticamente dobrou, passando de 23% para 42% do total do território. Com menos floresta, a chuva que abastecia os lençóis freáticos é menos absorvida e ainda carrega sedimentos para os leitos dos rios, facilitando os assoreamentos.
— Talvez, no futuro breve, mesmo com chuva, a inundação vai ser diferente do que a de 60 anos atrás — diz Rosa. — O Pantanal está mais suscetível ao fogo.
Fim da pororoca
Na Amazônia, o fim de um rio causou impactos sociais, ambientais e turísticos. O Rio Araguari, no Amapá, era famoso por suas pororocas, encontro das suas águas com as do Oceano Atlântico que formavam ondas em seu leito e atraíam surfistas de todo o mundo. Desde 2015, porém, a pororoca parou de acontecer, resultado da seca e da mudança do curso do rio. Além da diminuição de chuva, houve a construção de três hidrelétricas no entorno do Araguari, a abertura de canais para levar águas a fazendas e degradação causada pelo pisoteio de búfalos criados na região.
— O rio começou a ser desviado por um canal. A foz secou, ficou assoreada e não existe mais — conta Bruno Ferreira, pesquisador do Imazon das equipes Água e Amazônia. — Isso impactou na reprodução de peixes, na pesca e no turismo.
Segundo Ferreira, é possível que em novos ciclos de seca, lagos deixem de existir na Amazônia.
— No ano passado, os lagos de Tefé e de Coari ficaram secos por meses. É improvável que rios mais extensos desapareçam, mas só de diminuir a vazão já impacta a população e a fauna. Em relação a lagos, é bem possível que alguns deixem de existir com a nova dinâmica de temperatura global.
Professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, Fernando Mainardi Fan diz que a natureza sempre conviveu com longos ciclos de seca ou de chuva e possui um sistema de “auto regulação” para se recuperar. O problema é que, com a ação humana, esse sistema de proteção se perde.
— O país está mais seco. O Pantanal e a Amazônia são duas grandes caixas d’água do Brasil, mas vem secando. Agora tem que chover muito acima do normal para encher de novo — diz o professor, que destaca a necessidade de adaptações das cidades com as mudanças climáticas. — Os modelos apontam que o Sul será mais chuvoso e o Norte mais seco. Já na região central há uma incógnita.
Fonte: O Globo