Contaminando as Compras Públicas Brasileiras

Aeerj > Notícias > Setor > Contaminando as Compras Públicas Brasileiras

Artigo por Vinicius Benevides, Conselheiro da Câmara Brasileira da Indústria da Construção / Diretor da COINFRA

O processo de contratação pública no Brasil enfrenta uma série de desafios que comprometem sua a eficiência, qualidade e, consequentemente, o atendimento às necessidades da população. A recente veiculação da contratação de um laboratório que supostamente não realizou seu serviço de forma adequada e culminou na infecção por HIV de transplantados é um caso emblemático, trazendo à tona muitos dos problemas sistêmicos do processo de compras públicas brasileiro, agravados pela utilização alargada e inadequada da modalidade de pregão eletrônico ou o chamado modo de disputa aberto.

Inicialmente, cabe ressalvar que este artigo não pretende formar um juízo de valor sobre o ocorrido, sendo certo que deve ser garantida a ampla defesa e o contraditório a todos, bem como se presumir a inocência até a prova em contrário. Contudo, o caso teve repercussão nacional, chocando as pessoas e, por isso, pode servir como base para reflexões importantes sobre o modelo de licitações canarinho.

Partindo-se das notícias veiculadas 1 , principalmente de uma matéria do O Globo de 16.10.24, e de uma análise perfunctória do processo de contratação do laboratório de exames médicos, alguns pontos chamam a atenção de quem está acostumado a lidar com processos de seleção públicos e demonstram o gabarito do erro de nossos procedimentos de compras.

Primeiro, é preciso desmistificar algo destacado em diversas matérias e que acabou repercutindo na população, de que seria suspeito o laboratório ter ganho com apenas R$ 1.500,00 de diferença para o concorrente. Isso, na modalidade de disputa aberto – o famoso pregão – é a coisa mais normal e natural do mundo. É um leilão às avessas. Como o próprio nome já deixa claro, nesse modo de disputa os concorrentes sabem quais são os preços dos competidores e ofertam lances menores sucessivamente. Obviamente, ninguém vai dar um lance muito abaixo do competidor, cadastrando usualmente a diferença mínima permitida entre ofertas.

Na realidade, o que passou sem chamar atenção, mas que deveria causar estranheza, é o desconto de 37% da vencedora sobre o valor-base orçado pelo governo. Isso não surpreendeu a mídia provavelmente devido à cultura brasileira de realizar compras públicas pelo menor preço, ao invés de pelo melhor preço. Um desconto desta magnitude é algo que deveria ser a exceção, mas, infelizmente, devido ao incentivo perverso à descontos irresponsáveis que a modalidade de compras por pregão gera, isso tem se tornado cada vez mais usual. Preços inexequíveis geram contratações de obras, produtos e serviços de baixa qualidade e que muitas vezes não atingem a finalidade para a qual foram contratados ou nem mesmo são entregues ou finalizados. Parece que foi exatamente o caso e o pregão, infelizmente, potencializa isso.

1 Laboratório ganhou licitação para exames em órgãos transplantados com preço 0,01% menor que concorrente – https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/10/16/laboratorio-ganhou-licitacao-para- exames-em-orgaos-transplantados-com-preco-001percent-menor-que-concorrente.ghtml

O pregão era regrado pela Lei 10.520/02, antes de ser revogada pela Nova Lei de Licitações, a 14.133/21. Seu intuito era facilitar o processo de compras e buscar uma competitividade maior para aquisição de bens e serviços comuns, sendo considerados como tais aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos, conforme especificações usuais de mercado, inclusive abarcando a área de saúde e de engenharia. E aí está a raiz de muitos debates e de diversos problemas. O que pode ser classificado como um serviço comum de saúde ou de engenharia? A construção de uma escola seria algo comum? E de um hospital? Uma ponte? Uma rodovia? Um exame laboratorial investigativo de uma doença mortal e sem cura? O pregão foi concebido para agilizar a compra de canetas e papéis higiênicos pela Administração, e para serviços de limpeza e portaria de prédios públicos. Demandas diuturnas e repetitivas, com baixo risco em caso de insucesso.

O pregão não deveria ser utilizado para serviços e obras cujo padrão de qualidade da execução somente possa ser aferido após o seu término, pois pode comprometer a sua finalidade. A utilização alargada do pregão gerou um cemitério de obras paralisadas no país, cujo número supera as 8 mil, entre outros diversos problemas nas compras públicas, sendo a contaminação de transplantados por suposta deficiência na prestação de serviços mais um péssimo exemplo.

Mais uma questão que foi crucial para a contratação do laboratório foi a vantagem competitiva por ser uma empresa de pequeno porte (EPP) 2 . O faturamento máximo de uma
empresa de pequeno porte (EPP) no Brasil 3 é de R$ 4,8 milhões. O valor total da licitação que o laboratório de pequeno porte teve a vantagem competitiva de dar o último lance era de aproximadamente R$ 15 milhões, ou seja, mais de três vezes o faturamento máximo de uma EPP. Uma empresa pequena jamais poderia ter vantagem competitiva para ganhar um contrato grande. Felizmente, após muitos casos de insucesso, como também aparenta ter sido esse, e muitos debates e lutas de diversos setores, em especial da construção civil – capitaneado pela CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção) -, a Nova Lei de Licitações, a 14.133/21, adequou a vantagem competitiva das empresas pequenas para apenas as licitações do seu porte 4 . Então, sob a égide da nova Lei, provavelmente o laboratório não teria a oportunidade de cobrir o lance e, consequentemente, não venceria essa licitação. Rumo corrigido neste tópico.

2 A lei que permite que empresas de pequeno porte possuam vantagem competitiva em licitações, com a oferta de lances adicionais, é a Lei Complementar nº 123/2006. Esta lei assegura tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, permitindo que, em caso de empate ficto, essas empresas possam apresentar uma nova proposta quando sua oferta inicial estiver até um percentual definido por lei acima da melhor proposta de empresas de maior porte1.

3 O faturamento máximo de uma empresa de pequeno porte (EPP) no Brasil é determinado pela Lei Complementar nº 123/2006, também conhecida como a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa. De acordo com essa legislação, uma empresa de pequeno porte pode ter um faturamento bruto anual de até R$ 4.800.000,00.

4 Lei 13.133/21 – Art. 4º Aplicam-se às licitações e contratos disciplinados por esta Lei as disposições constantes dos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.

Outro ponto importante abordado pela matéria jornalística é que o laboratório alegadamente não teria comprovado a integralidade da capacidade técnica requerida pelo edital. Pelo apurado, o laboratório só teria conseguido comprovar a execução de 581 mil exames por ano — e o edital exigia pelo menos 628 mil. No pregão (modo aberto), por vezes, há o receio dos gestores públicos de inabilitarem os ofertantes das propostas de menor valor, mesmo quando estes não possuem a qualificação estipulada pelo edital, somente conhecida depois da fase de classificação dos lances. O terror psicológico de ter de justificar aos órgãos de controle, ou à justiça, eventual desconsideração de propostas mais baixas acaba, por vezes, a estimular uma cegueira deliberada ou uma relativização equivocada de exigências editalícias. Infelizmente, a justificativa da contratação mais barata, em um país onde há a cultura da contratação pública pelo menor preço, ao invés da busca pelo melhor preço, é, muitas vezes, erroneamente considerada mais fácil e menos arriscada. Noutro giro, maus gestores também podem utilizar a justificativa do menor preço para habilitarem licitantes ao seu próprio interesse.

Resumindo, tem-se, no caso concreto, um pregão para um serviço aparentemente não comum e de valor relevante, uma empresa pequena com vantagem competitiva em uma licitação de vulto, um vencedor com desconto de grande magnitude e, por fim, a habilitação de um licitante que supostamente não cumpria a integralidade das exigências técnicas. Tudo certo para dar errado mas o gestor público pode, tão somente, ter cumprido os procedimentos legais existentes.

É preciso mudar a cultura brasileira de punição e de busca por bodes expiatórios das consequências de nossos problemas para uma mentalidade de tratamento adequado de suas
causas, especialmente quando nos deparamos com problemas importantes e estruturantes. E esse é o caso. Prevenir é mais barato, sempre.

Meus profundos sentimentos para os contaminados e para suas famílias, todavia, somente rogo para que o ocorrido não sirva somente para punir exemplarmente eventuais culpados, mas para, principalmente, contribuir para o aperfeiçoamento dos nossos processos de compras públicas, para que insucessos no atendimento ao interesse público não se tornem cada vez mais a regra. Para isso, a limitação do uso indiscriminado do modo aberto (pregão) é importante e essa pauta está nas mãos do Congresso Nacional, com a análise dos vetos da Lei 14.770/23.

§ 1º As disposições a que se refere o caput deste artigo não são aplicadas:

I – no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte;
II – no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.
§ 2º A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.
§ 3º Nas contratações com prazo de vigência superior a 1 (um) ano, será considerado o valor anual do contrato na aplicação dos limites previstos nos §§ 1º e 2º deste artigo.

Enquanto não se resolver, da melhor forma, as causas dos problemas das contratações públicas, aqueles que lutam pelo desenvolvimento sustentável da nação brasileira continuarão se sentindo como o garoto do poema que tenta carregar água em uma peneira.

Fonte: O Empreiteiro