Municípios mapeiam vulnerabilidades, demandas e recursos e usam instrumentos de gestão climática para tomadas de decisões
O aumento da frequência e da intensidade dos eventos climáticos extremos, tais como fortes chuvas, ondas de calor e secas, tem levado as cidades da América Latina a buscar maior preparo para lidar com essa nova realidade. Em toda a região, 93,2% dos municípios identificaram riscos climáticos em seus territórios, sendo que 60% deles têm objetivos ligados à adaptação e 41% apresentam metas ligadas à redução dos gases de efeito estufa. Os dados constam de um levantamento realizado pelo CDP, plataforma global de informações ambientais de empresas e cidades, em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (ICS), a partir de informações relatadas pelos governos locais. O Brasil é o país que reúne a maior quantidade de cidades que reportaram à plataforma em 2023 – 96, de um total de 328.
O aumento da importância dada pelas prefeituras a ações de adaptação mostra que os impactos de um problema global – as mudanças climáticas – estão sendo sentidos em nível local. “A adaptação climática está tomando o protagonismo em função da percepção de que os impactos só tendem a aumentar, o que gera uma movimentação nos territórios”, diz Maria Clara Nascimento, líder de cidades, Estados e regiões do CDP Latin America. Essa postura também leva a um maior pleito por financiamento voltado à implementação de infraestruturas mais resilientes. Em 2023, foram relatados 688 projetos em busca de recursos na América Latina, que somam US$ 9,6 bilhões e incluem o setor de transportes, energia, gestão de resíduos e áreas verdes. Só as cidades brasileiras apresentaram 215 projetos, uma demanda de US$ 2,32 bilhões.
Seguir o fluxo dos recursos internacionais direcionados à ação climática é um dos motivos que levam mais cidades e Estados a realizar diagnósticos sobre suas vulnerabilidades e demandas e, a partir deles, adotar instrumentos de gestão climática que orientam a tomada de decisões. Segundo o CDP, 207 municípios realizaram análises de riscos climáticos, 180 mapearam emissões de gases de efeito estufa e 153 estruturaram planos de ação climática em 2023. A presença de municípios brasileiros é expressiva, com 27 cidades com planos de ação (sendo 12 capitais e 15 cidades de médio e pequeno portes) e outras 49 em processo de elaboração dessas políticas. O CDP registrou também um recorde no número de cidades líderes em ação climática – ou seja, que adotam instrumentos de gestão constantemente atualizados e com ações de vanguarda. Hoje, são 11 na América Latina, sendo três capitais brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
A capital baiana foi uma das primeiras do país a mapear riscos, realizar inventários das emissões de gases de efeito estufa e elaborar um plano de ação climática, com metas de mitigação – a principal delas é se tornar cidade neutra em carbono em 2049, quando completará 500 anos. O primeiro inventário foi realizado em 2016, com atualizações em 2020 e 2023, que mostraram que a cidade alcançou uma redução das emissões de gases de efeito estufa de 36,5% entre 2014 e 2023. O plano de ação climática mapeou que as principais vulnerabilidades de Salvador são a elevação do nível do mar, as ilhas de calor, deslizamentos e erosão costeira. A atualização do plano, prevista para o ano que vem, traz maior ênfase para as questões de adaptação.
Entre as ações previstas, está o projeto de reurbanização com foco em resiliência climática do bairro Vila Mar, fruto de um acordo de cooperação internacional com o Fundo Financeiro do C40 (CFF) e a GiZ, agência alemã de cooperação internacional, que prevê recursos a fundo perdido de US$ 1 milhão. O bairro, que sofre com alagamentos e deslizamentos de encostas, deve ser totalmente requalificado a partir de soluções baseadas na natureza. De acordo com Ivan Euler, secretário de Sustentabilidade e Resiliência de Salvador, os investimentos na prevenção de desastres naturais realizados nos últimos anos, como a modernização dos sistemas de monitoramento e alertas da Defesa Civil e obras para contenção de encostas já surtem efeito. “Nos últimos quatro anos, não registramos vítimas fatais das chuvas, mesmo tendo registrado em 2024 quase o dobro do volume de chuvas em comparação a anos anteriores”, diz Euler.
Nacionalmente, a temática da adaptação vem ganhando espaço institucional. Em junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.904/2024, que cria diretrizes para a elaboração de planos de adaptação climática, propondo uma articulação entre a esfera federal e setores econômicos para a estruturação das ações. Está também em curso a atualização do Plano Clima, que trará eixos de mitigação e adaptação para cada um com estratégias nacionais e planos setoriais, sendo sete para mitigação e 15 para adaptação. A adaptação também foi destaque na declaração dos ministros de Meio Ambiente do G-20, chancelada por 31 delegações, no início de outubro. O grupo se comprometeu a “trabalhar junto para construir e fortalecer a base científica e o conhecimento sobre clima nos países em desenvolvimento”.
Nas últimas conferências de clima da Organização das Nações Unidas (ONU), as discussões sobre justiça climática têm reverberado, com um crescimento da mobilização da sociedade civil por políticas de adaptação que considerem os direitos das populações mais vulneráveis e que abarquem o conhecimento local como parte da solução. “O próximo ciclo de desenvolvimento econômico global será pautado pela adaptação, mas esse fluxo de investimentos precisa vir acompanhado de um olhar de justiça climática, para que não agrave o quadro de desigualdade social nas cidades do Sul global”, afirma Gisele Brito, coordenadora do Instituto de Referência Negra Peregum, uma das organizações que fazem parte da Rede de Adaptação Antirracista. O movimento reúne mais de cem ONGs e ativistas, com o objetivo de pressionar para que as políticas climáticas assumam uma perspectiva de combate ao racismo ambiental.
A adoção de medidas de prevenção de riscos e de adaptação podem significar a diferença entre a vida e a morte de pessoas de maior vulnerabilidade social, como moradores de periferias e encostas, ribeirinhos, negros e mulheres, os mais afetados pelas catástrofes climáticas. Paralelamente ao poder público, o tema já mobiliza lideranças comunitárias para a ação. É o caso do bairro da Várzea, na Vila Arraes, comunidade localizada às margens do rio Capibaribe, no Recife (PE), duramente afetada pelas chuvas extremas que caíram em maio de 2022. Os moradores viveram momentos de terror devido a alagamentos e deslizamentos de terra, com mais de 50 famílias desabrigadas e uma morte por eletrocussão. Após ações emergenciais durante a tragédia, lideranças do bairro se organizaram para evitar que o quadro se repetisse no ano seguinte e elaboraram, com recursos próprios, um plano de ação comunitária para mitigação dos efeitos da chuva.
O primeiro passo foi realizar um mapeamento georreferenciado das áreas afetadas, em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que identificou o número de moradores, a quantidade de casas com riscos estruturais e de fiação no bairro e o perfil socioeconômico das 223 famílias atingidas. A partir dos dados, a Associação Gris Espaço Solidário, que atua no bairro, elaborou um plano de comunicação voltado aos moradores, com linguagem acessível, utilizando redes sociais e aplicativos de mensagens para fazer ecoar mais rapidamente os alertas da Defesa Civil. Também foram criadas oficinas de letramento climático, para conscientizar sobre as mudanças climáticas e seus impactos. Outra estratégia foi a organização em brigadas, formadas por moradores e voluntários, para tratar da gestão de crise, comunicação, saúde e logística – antes, durante e depois das ocorrências de chuvas. O grupo também orientou os moradores a montar “bolsas sobrevivência”, contendo itens essenciais, como medicamentos, roupas e documentos, caso precisassem sair de suas casas em situação de emergência. De acordo com a cientista social Joice Paixão, coordenadora da associação, é possível criar planos de adaptação a partir do conhecimento e envolvimento da população. “Construir cidades resilientes só será possível através da participação do próprio território. Temos que ter amparo técnico, mas com ações pensadas por quem mora e vive a realidade do local”, diz.
Mulheres que fazem parte de comunidades extrativistas pesqueiras da reserva extrativista (Resex) de Canavieiras, no litoral sul da Bahia, também iniciaram um projeto para construir e colocar em prática um protocolo de adaptação e de ações emergenciais ante as mudanças climáticas. As pessoas que vivem da pesca já sentem os impactos do clima extremo na oferta de peixes e crustáceos, como siri e guaiamum, já que o excesso de chuvas altera o ecossistema dos manguezais. Os ribeirinhos também sofreram os impactos de três anos consecutivos de chuvas fortes (2021, 2022 e 2023), que causaram alagamentos e perdas de lavouras. “O cotidiano das comunidades extrativistas gira em torno dos rios e dos mangues. Com as chuvas extremas, elas não só perdem a casa, mas também o modo de vida”, diz Gesiani Souza, coordenadora e articuladora política da Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas Pesqueiras da Bahia.
O grupo recebeu um aporte financeiro de R$ 50 mil do edital Raízes do Fundo Brasil, que destina recursos da filantropia para projetos com foco em justiça climática para povos e comunidades tradicionais, o que possibilitou dar início a um diagnóstico para entender como a população de cerca de 2.500 famílias está sendo afetada pelas alterações no clima e mapear os principais riscos, que está sendo feito por jovens da comunidade. A ideia é gerar um documento que permita à comunidade dialogar com o poder público e ONGs em busca de soluções de adaptação com base na realidade local. A ideia é reunir protocolos de 28 associações de comunidades extrativistas de todo o país, para que ganhem visibilidade nos eventos internacionais, como as COPs.
O aquecimento global já impacta os meios de subsistência de comunidades tradicionais e povos indígenas em todo o país, seja por excesso de chuvas, calor extremo – o que tem prejudicado, por exemplo, a coleta do açaí – e queimadas, que levaram à perda de lavouras e agroflorestas. “As comunidades já não conseguem produzir como antes, e isso requer adaptação. A proposta do fundo é trazer apoio para que as populações consigam se preparar ativamente para esses novos tempos, a partir da auto-organização e do protagonismo no debate público”, diz Ana Valéria Araújo, diretora-executiva do Fundo Brasil. Os editais preveem a doação de R$ 6 milhões ao longo de três anos para fortalecer os projetos das comunidades.
Fonte: Valor Econômico