Marina Schneider
O Brasil teve, entre 2020 e 2022, a maior média trienal de investimentos no setor de saneamento dos últimos 12 anos, totalizando R$ 19 bilhões
A Lei 14.026/2020, conhecida como o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, completou quatro anos de vigência no mês de julho. Nesse período, o saneamento conquistou um protagonismo inédito nas discussões sobre políticas públicas e investimentos, o que não é pouco em um país que tem tantos temas urgentes. O Novo Marco buscou reestruturar o setor por meio do estímulo à concorrência, da regionalização como forma de assegurar escala e viabilidade econômica, da uniformização das regras e da criação da ambiciosa meta de universalização dos serviços de água e esgoto até 2033.
O aumento substancial dos investimentos privados no saneamento básico foi um dos principais avanços proporcionados pela Lei 14.026/2020.
Em 30 de junho de 2024, segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon-Sindcon), os operadores privados atendiam, individualmente ou em parceria com companhias estatais, 52,6 milhões de pessoas em 881 municípios. Desde a edição do Novo Marco, foram realizados 44 leilões em 19 Estados brasileiros, que resultaram em um investimento total contratado, incluindo outorgas, de R$ 103 bilhões. Estamos longe da universalização, mas é um enorme avanço.
A decisão de exigir eficiência e competitividade dos prestadores de serviços de água e esgoto – seja por meio de capacidade econômico-financeira, seja pela definição de parâmetros de qualidade e cobertura – gerou oportunidades para operadores e investidores que até então não tinham acesso a esses contratos. Como resultado, desde 2020 o número de municípios atendidos por operadores privados cresceu 203%, segundo dados da Abcon-Sindcon. Os dados mais recentes disponíveis no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) indicam que o percentual de brasileiros com acesso a abastecimento de água subiu de 83,7% em 2019 para 84,9% em 2022. O acesso ao tratamento de esgoto subiu de 54,1% em 2019 para 56% em 2022.
Outro importante avanço foi conquistado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A lei delegou à ANA a competência para estabelecer normas de referência para as entidades infranacionais que regulam os serviços de saneamento básico nos Estados e municípios. Após idas e vindas na definição de suas competências, a agência tem hoje posição bem definida e avança com qualidade no processo de normatização do setor, tendo cinco normas de referência publicadas até esta data. Pode parecer pouco, mas é preciso notar que cada norma é precedida de tomada de subsídios e audiência pública, etapas em que são ouvidos todos os stakeholders e é assegurada a participação da sociedade. Somente após todas as etapas é editada a norma final.
Entretanto, o cenário não é isento de desafios. A polarização política em torno do Novo Marco tem sido um empecilho desde antes de sua aprovação. No cerne da questão está o futuro das empresas estatais que ainda hoje dominam a prestação de serviços de água e esgoto. O Novo Marco estabelece que as empresas que não comprovarem capacidade financeira para os investimentos necessários à universalização não poderão manter ou renovar seus contratos.
Em menos de 90 dias, o governo federal editou dois decretos regulamentando essa disposição legal, com regras absolutamente discrepantes. Ao final, prevaleceu um prazo adicional tão extenso para as empresas estatais sem condições econômicas de prestar o serviço de saneamento que desnatura a obrigação legal. Há outros exemplos que ilustram a neutralização de regras basilares do Novo Marco.
Entre os pilares do Novo Marco, o menos avançado parece ser a regionalização. Diversos Estados da federação aprovaram em lei alguma forma de regionalização. Na prática, porém, muitas dessas estruturas existem apenas formalmente, dado que não resultaram em nova contratação ou nova organização da prestação dos serviços. Vale dizer ainda que há estruturas de regionalização claramente contrárias à Lei 14.026/2020 e cuja constitucionalidade está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal, ainda sem definição. Aqui, vale um apelo para que tais ações sejam julgadas: para atrair investimentos, previsibilidade é essencial.
A desigualdade regional permanece uma barreira crítica para a universalização dos serviços de saneamento. Enquanto Estados como São Paulo apresentam avanços notáveis e lideram o ranking de acesso a serviços básicos, as regiões Norte e Nordeste ainda enfrentam dificuldades para a expansão. A tarifa social, aprovada pela Lei 14.898, de 2024, resolve parcialmente a questão. É preciso pensar em formas de compensação para assegurar a viabilidade econômica dos serviços em certas localidades. Investimentos em tecnologia e soluções alternativas necessariamente serão parte da solução para o atendimento a áreas mais distantes.
Há desafios relevantes a serem vencidos, tais como a execução dos investimentos contratados, a resiliência dos contratos para que sigam viáveis à luz das mudanças demográficas, comportamentais e climáticas, a governança das entidades interfederativas, o volume expressivo de investimentos necessários à universalização e o baixo número de operadores privados, entre outros. Sem falar nos demais setores abrangidos pelo Novo Marco, em particular coleta e manejo de resíduos sólidos e drenagem urbana, essa última reconhecida como urgente após os eventos extremos que atingiram o Rio Grande do Sul.
Com a complexidade que tem o setor, os avanços obtidos em quatro anos merecem ser celebrados. O Brasil teve, entre 2020 e 2022, a maior média trienal de investimentos no setor de saneamento dos últimos 12 anos, totalizando R$ 19 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira de Bancos Internacionais (ABBI). O saneamento entrou para a pauta, foram entregues bons projetos, há investimentos relevantes contratados, a regulação evolui e, mais importante, mais gente passou a receber água tratada e a ter esgoto coletado e tratado.
Os avanços até aqui foram os possíveis, e temos um caso de sucesso. Manter a segurança jurídica conquistada com o Novo Marco Legal do Saneamento é fundamental para o desenvolvimento do setor e para garantir que o saneamento básico, um direito fundamental, seja também universal.
Fonte: Valor Econômico