Mesmo após assinar em conjunto com outras plataformas um acordo de cooperação para evitar a propagação de fake news sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, a rede de compartilhamento de vídeos YouTube tem permitido que canais lucrem com conteúdos que fazem alegações falsas sobre a tragédia ou promovem discursos negacionistas sobre as mudanças climáticas. O alerta é do NetLab, laboratório vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que identificou postagens desinformativas que seguem monetizadas pela big tech. Ao menos oito desses vídeos, em que são exibidos anúncios vendidos pelo YouTube, somam juntos mais de 2,3 milhões de visualizações desde o início de maio.
Uma das principais frentes de desinformação tem sido a atuação dos governos durante a crise no estado. Com 240 mil visualizações, um dos vídeos apontados pelo laboratório distorce, por exemplo, uma fala da ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), ao atribuir a ela a afirmação de que o governo federal só mandaria recursos para o Rio Grande do Sul quando a água baixasse. O conteúdo enganoso tem como base um discurso de Tebet de 7 de maio, em que a ministra diz que só seria possível medir a extensão da tragédia e calcular os gastos necessários para ajudar o estado “quando essa água baixar”.
— O Estado é ineficiente em todos os aspectos. No final, sempre vai ser o povo pelo povo — acrescenta o responsável pelo conteúdo, ao criticar a suposta ineficiência do governo federal em repassar recursos.
Outro vídeo monetizado vai na mesma linha ao propagar uma suposta proibição do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul no uso dos seus jet skis nas regiões afetadas pelas enchentes. A afirmação foi desmentida pela corporação.
Procurado pelo GLOBO, o YouTube informou que não recomenda ou evidencia conteúdo desinformativo sobre mudanças climáticas e “exibe vídeos de fontes confiáveis nos resultados de pesquisa”. A plataforma reforça que proíbe a monetização de conteúdos que tratam as mudanças climáticas como mentira ou golpe.
Doações viram arma
As doações às vítimas da tragédia também foram usadas para desinformar. Uma postagem monetizada pelo YouTube, que soma mais de 10 mil visualizações, reproduz uma fala do deputado português André Ventura, presidente do Chega, partido de extrema direita do país, em que afirma que o governo Lula havia recusado ajuda internacional para as vítimas da tragédia. O parlamentar diz que a gestão Lula não quer que Portugal envie 120 toneladas de doações e quer “esconder as falhas” no tratamento dado à tragédia.
Em 14 de maio, o episódio chegou a ser verificado pelo Fato ou Fake, serviço de checagem do Grupo Globo. As doações vindas de Portugal, na verdade, estavam em uma triagem para separar itens por categorias, como roupas, alimentos e medicamentos, e conferir a validade de eventuais itens perecíveis. Além disso, o governo brasileiro já havia retirado restrições legais para a importação de bens usados mediante doação com o objetivo de receber ajuda humanitária de outros países.
O NetLab/UFRJ chama atenção para vídeos monetizados que lançam dúvidas sobre os efeitos das mudanças climáticas em episódios como o das chuvas no Rio Grande do Sul. Com quase 100 mil visualizações, um desses conteúdos foi publicado em 12 de maio por um perfil voltado para dicas de investimentos. No vídeo em questão, com 20 minutos de duração, o responsável pela canal nega existir relação direta entre as mudanças climáticas e a catástrofe vivida pelos gaúchos.
Em 1941, quando o mundo emitia cerca de 5 bilhões de toneladas de CO2 por ano, enquanto hoje é mais de 35 bilhões, e mesmo assim tivemos enchentes — diz o autor do vídeo.
A afirmação contraria o consenso científico. Especialistas apontam que tanto a frequência quanto a intensidade de fenômenos como as chuvas no Rio Grande do Sul têm sido influenciadas pelas mudanças climáticas. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), maio passado foi o mês mais chuvoso da história de Porto Alegre desde 1910. A cidade contabilizou pela primeira vez uma marca acima de 500 milímetros de chuva registrados.
Sem responsabilização
Diretora do NetLab/UFRJ, Rose Marie Santini explica que a monetização de vídeos desinformativos é perigosa por eclipsar o acesso a informações verdadeiras durante um período de calamidade. Ela defende que as big techs sejam responsabilizadas:
— A monetização traz vantagens na recomendação de conteúdos nas plataformas, que precisam se responsabilizar pela forma como ganham dinheiro. A gente sabe que moderam diversos conteúdos, mas não são transparentes no que moderam e como moderam. É um serviço que oferecem para anunciantes, e elas são responsáveis pelos serviços que prestam.
Diretor de Tecnologia e Estudos Temáticos do Democracia em Xeque, João Guilherme Bastos dos Santos destaca o papel da segmentação de conteúdos no ambiente das plataformas:
— Há um diálogo com uma desinformação científica que vimos na pandemia. E essas publicações, quanto mais segmentadas, mais caminham para públicos específicos, em que conseguem alcançar as pessoas com mais facilidade. A mesma coisa funciona para teorias de conspiração.
O levantamento do NetLab mapeou também vídeos conspiratórios voltados para usuários religiosos que apontam previsões bíblicas como explicação para a tragédia no Rio Grande do Sul e outros desastres naturais. Em um deles, um pastor que se apresenta como “um dos mais relevantes do segmento cristão” chega a associar a calamidade no Sul do país ao fato de o Rio Grande do Sul ser, segundo o religioso, “um dos estados em que menos se prega o evangelho no Brasil”
Nos vídeos mapeados, a plataforma exibiu um texto sobre mudanças climáticas, que direciona os usuários a uma página explicativa da Organização das Nações Unidas (ONU), mas não há sinalização de que o conteúdo tem teor desinformativo.
Em seus termos de uso, a plataforma diz proibir anúncios em vídeos que contenham informações que “contradizem consensos científicos bem estabelecidos sobre a existência e as causas das mudanças climáticas”. A lista inclui conteúdos que abordam o fenômeno como farsa ou fraude e alegações que neguem a participação da atividade humana em seus efeitos.
Ao assinarem o acordo com o governo federal contra fake news, o YouTube e outras plataformas se comprometeram a promover a “integridade da informação” e o enfrentamento à desinformação “na medida de suas possibilidades”. Também prometeram disponibilizar recursos e mecanismos de acesso a informações oficiais sobre a calamidade vivida no Rio Grande do Sul.
As desinformações mapeadas
Sem relação com mudanças climáticas
Um dos vídeos com teor negacionista defende não existir relação entre as enchentes no Rio Grande do Sul e as mudanças climáticas. Também sugere que a alta na emissão de dióxido de carbono nas últimas décadas não tem impacto em enchentes.
Distorção sobre fala de Simone Tebet
Outro vídeo que rendeu pagamento ao canal que o publicou engana ao sugerir que a ministra declarou que só mandaria recursos federais ao Rio Grande do Sul quando a água baixasse. Tebet se referia a ter uma estimativa dos gastos necessários no estado.
Recusa de ajuda internacional
Um dos perfis reproduz a mensagem falsa de que o governo Lula estaria barrando a entrada de 120 toneladas de mantimentos enviados por Portugal. As doações passavam, na ocasião, por uma triagem.
Bombeiros sem jet-ski para resgates
Outra fake news que rendeu monetização trata de uma suposta proibição do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul no uso de jet skis nas regiões afetadas pelas enchentes.
Fonte: O Globo