LRF, que foi chamada de ‘AI-5 fiscal’ na época em que foi apresentada, completa 24 anos com diversos obstáculos pela frente, após período com resultados positivos
Por Daniel Weterman
Aos 24 anos, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) está em xeque com os consecutivos resultados negativos das contas públicas. Depois de 14 anos no azul, desde a criação da lei em 2000, as contas do governo federal foram parar no negativo em 2014, justamente no ano em que houve a primeira grande alteração para refinanciar a dívida dos Estados e municípios. De lá para cá, os gastos ainda não voltaram para a superfície de forma sustentável. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estipulou a meta de zerar o déficit em 2024, mas ainda admite resultados negativos até o fim do mandato.
O projeto de criação da lei enfrentou forte oposição no País. Em julho de 1999, por exemplo, o então prefeito de Belo Horizonte, Célio de Castro (PSB), chamou a LRF, proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso ao Congresso Nacional, de “AI-5 fiscal”, comparando o projeto ao Ato Institucional nº 5, baixado em 1969, o mais forte instrumento de poder da ditadura militar.
Foram várias as críticas de prefeitos, governadores e parlamentares, que se aproximavam de um ano eleitoral e temiam ter de cortar gastos e comprometer a campanha municipal. O próprio relator na Câmara, o deputado Pedro Novais (PMDB-MA), dizia que a proposta era “muito malfeita” e que serviria para enquadrar “pequenos funcionários e prefeitos miseráveis”.
A LRF foi aprovada, promulgada no dia 4 de maio de 2000 e completou 24 anos neste mês. A mudança deu início a um período com resultados positivos para as contas públicas, queda de endividamento dos Estados e maior transparência sobre os gastos dos municípios, mas o Brasil voltou a ficar com as contas no vermelho e ainda enfrenta o desafio de controlar a dívida pública.
Gastando mais do que arrecada, o governo precisa se endividar para bancar os serviços públicos e fazer investimentos. A LRF obriga o poder público a perseguir metas para equilibrar as contas e o endividamento. No ano passado, o governo federal gastou R$ 230,5 bilhões a mais do que arrecadou, sem contar as despesas com juros. A dívida bruta do governo geral, que reúne União, Estados e municípios, atingiu 75,7% do PIB em março deste ano, impondo um desafio para a estabilização.
Uma das autoras da LRF, a economista Selene Peres Peres Nunes afirma que o arcabouço fiscal desenhado pelo governo Lula tira a credibilidade da legislação ao estabelecer uma meta de resultado primário (receitas e despesas) com intervalos de tolerância que, na prática, jogam os esforços para baixo. Em 2024 e 2025, a meta do governo é zerar o déficit público, mas ainda há uma tolerância de déficit equivalente a 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB).
A meta que admite somente resultados positivos foi adiada para 2027, depois do mandato atual do presidente Lula. “Na prática, se você estabelece uma banda, a sua meta para valer vai ser a banda inferior porque é ela que dispara os mecanismos da LRF (como a necessidade de bloquear despesas)”, diz Selene, assessora econômica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão durante a elaboração da lei e atual secretária de Economia de Goiás.
O Brasil também enfrenta um cenário de queda dos investimentos públicos. E a queda se intensificou depois de 2014, coincidindo com o início do déficit fiscal e as mudanças na LRF. Em 2010, o investimento público totalizou 1,15% do PIB. Em 2014, 0,99%. No ano passado, caiu para 0,54% e com um componente a mais: um terço do valor foi capturado por emendas parlamentares, que se traduzem em projetos paroquiais e sem vinculação com projetos de desenvolvimento nacional.
Dívida dos Estados cai, mas Rio de Janeiro, Rio Grane do Sul e Minas Gerais estão em alerta
Nos Estados, houve queda do endividamento. Quando a LRF foi aprovada, 17 Estados tinham dívidas maiores do que suas arrecadações. Hoje, são quatro (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo). No total, a dívida dos governos regionais caiu de 73% da receita corrente líquida em 2016 para 31% em 2022, de acordo com dados do Tesouro Nacional. Três Estados, porém, estão em alerta maior: Rio de Janeiro, com dívida de 188%, Rio Grande do Sul (185%) e Minas Gerais (168%).
A LRF não admite um endividamento superior a 200% da arrecadação, o que tem levado os governos estaduais a rodadas de negociação com a União, o principal credor dos débitos. “Às vezes a gente dá três passinhos para a frente, mas dá um passinho para trás porque a nossa resistência em avançar e aceitar que as contas públicas têm de ser equilibradas é muito grande”, diz Selene Peres Nunes.
Desde a promulgação da lei, a LRF passou por oito governos diferentes (FHC 2, Lula 1, Lula 2, Dilma 1, Dilma 2, Temer, Bolsonaro e Lula 3) e por mudanças no regramento fiscal, incluindo o teto de gastos públicos, o orçamento de guerra da pandemia de covid-19 e agora o novo arcabouço fiscal. Nos Estados e municípios, porém, é a LRF que permanece como a referência para os gestores públicos.
A lei fixou o limite de despesas do poder público com funcionários: 50% da receita corrente líquida na União e 60% nos Estados e municípios. Na época da votação, 15 Estados estouravam o teto e não havia sequer dados sobre outras 10 unidades da federação. Em 2023, apenas dois ficaram acima do limite: Rio Grande do Norte e Minas Gerais, sem considerar os que descumpriram os limites individuais de cada Poder.
A presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU), Lucieni Pereira, aponta um problema na verificação dos gastos: cada vez mais governos locais vêm burlando a LRF por meio da contratação de serviços e terceirizados para realizar as atividades da administração pública, escapando dos limites. “O equilíbrio fiscal ainda não é um valor na sociedade”, diz.
Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) identificou que 35,4% das prefeituras brasileiras contratavam organizações sociais para prestação de serviços em 2022. Desse universo, 40% dos municípios registravam apenas 10% desses gastos como despesas de pessoal e 42,3% não sabiam que parte correspondia a gastos com pessoal, evidenciando que a maioria dos valores não estava sendo registrada nos limites da LRF.
Fonte: Estadão