Números difíceis de entender
Só o FGTS teve uma arrecadação líquida, em 2003, de R$ 4,6 bilhões
Francis Bogossian*
Alguma coisa está errada neste País. A Caixa Econômica Federal é o único agente de financiamento da infra-estrutura do Brasil e lucrou em um ano praticamente a mesma coisa que destinou para água e esgoto, quando 60 milhões de brasileiros vivem sem saneamento básico e 15 milhões sem água encanada.
A Caixa anunciou, com muito orgulho, que seu lucro líquido atingiu R$ 1,6 bilhão, representando um crescimento de quase 50% sobre o ano anterior. E também foi com muito orgulho que informou que pela primeira vez em dez anos aplicou a totalidade dos recursos previstos em seu orçamento para o saneamento: R$ 1,7 bilhão.
A Caixa é um banco e como tal tem que dar lucro, assim como todas as atividades econômicas. Não é, porém, admissível que, sendo agente exclusivo da captação do FGTS e das loterias, trabalhe como as outras instituições financeiras que não são privilegiadas com a exclusividade destas receitas. Só o FGTS-Fundo de Garantia de Tempo de Serviço teve uma arrecadação líquida, em 2003, de R$ 4,6 bilhões, representando um crescimento 65% superior ao ano anterior.
Para a Habitação, no ano passado, a Caixa destinou R$ 5 bilhões. No entanto, é responsável por 30,38% do volume de caderneta de poupança do País. A Caixa fechou o ano com um saldo de R$ 43,8 bilhões na caderneta de poupança.
Estes recursos são remunerados muito abaixo da taxa de juros do mercado e, por isto mesmo, deveriam ser destinados, por lei, a investimentos em habitação, saneamento e infra-estrutura. Mas não é isto que acontece.
Os recursos da Caixa são aplicados em títulos públicos, cuja carteira cresceu de R$ 62 bilhões em 2002 para R$ 81 bilhões em 2003, provocado pela alta das taxas de juros. As receitas com operações de intermediação financeira foram de R$ 25,0 bilhões e a prestação de serviços rendeu R$ 4,59 bilhões.
Os lucros do setor bancário são fantásticos. Os cinco maiores bancos brasileiros (Banco do Brasil, Caixa, Bradesco, Itaú e Unibanco) registraram um lucro fantástico de R$ 10,5 bilhões em 2003, ou 23,2% a mais do que em 2002. Mas, este sucesso só ocorre com as instituições financeiras.
O que se pede é investimento em setores que gerem trabalho formal
Os números do IBGE registraram uma taxa de crescimento da indústria em 0,3%, ou seja, ficou estagnada e o setor da construção, pelo terceiro ano consecutivo, registrou declínio. Em 2001, a queda foi de 2,66%; em 2002, de 1,85% e a perspectiva do IPEA para 2003 é de que a redução fique em 8%.
Alguma coisa está errada e muito errada. Todos queremos estabilidade econômica com crescimento, mas não é possível que o setor financeiro seja o único beneficiado e o resto do país amargue perdas.
O que se pede não é extraordinário. São investimentos em setores que gerem trabalho formal, já que o nível de emprego fechou mais um ano com queda de 0,5%. E, com o baixo nível de escolaridade da população ativa brasileira, é exatamente o setor da construção que poderá absorver esta mão-de-obra.
O déficit habitacional calculado pela CBIC-Câmara Brasileira da Indústria da Construção é de 6,7 milhões de moradias. Para solucionar o problema e criar 700 mil empregos por ano, é necessário investir nos próximos 20 anos um montante equivalente ao lucro registrado em 2003 pelos cinco maiores bancos brasileiros, R$ 10,5 bilhões. Para a universalização do saneamento básico em todo o País, o Ministério das Cidades estima investimentos anuais, também em um prazo de 20 anos, entre R$ 6 e 12 bilhões por ano. O orçamento federal para saneamento, habitação e infra-estrutura este ano soma R$ 12 bilhões. Apesar do presidente Lula continuar pedindo prioridade para estes setores, as perspectivas para este ano continuam altamente desanimadoras.
* Francis Bogossian é empresário da construção e presidente da AEERJ-Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro